sábado, 30 de dezembro de 2017

A fogueira das vaidades da terceira onda feminista



Existe um teste que as feministas da terceira onda usam para tentar cooptar mais membros para o Clube das Mulheres Oprimidas, um espaço social onde a música ambiente é o falatório incessante, o traje a rigor é a irracionalidade (venha pelada, mas não venha sem o manto simbólico da falta de bom senso), o ponche de achismo é servido aos baldes e o cenário é algo que um antropólogo de Marte apontaria como “a vontade de rebanho da espécie humana manifestada da forma mais desesperada”. O teste é de apenas uma pergunta: “você é a favor da igualdade entre homens e mulheres?”. Se você responde que sim, dizem “está vendo?, você é feminista”. Claro. Só que ninguém faz a advertência para que tipo de feminismo as avaliadoras defendem. 

A terceira onda do feminismo é uma maré doentia, e os ingredientes da sopa primordial são carência, complexo de inferioridade e ignorância voluntária. O que se manifesta desse caldo é um desejo de aplauso (“lacração”, busca de apoio feminil, “deixa que eu desconstruo as coisas”), um narcisismo expressado aos berros de “Extra! Extra!” e uma repulsa ao conhecimento sóbrio e ao contraponto. 

Desejo de aplauso constante é carência: sem público, a feminista se deprime, e é na perseguição da aceitação que se adotam posições radicais, extremas, e a “problematização” do todo. A moderação dificilmente atrai seguidores, então é preciso inovar, e a glória de se sentir amada pelo coletivo virá quando uma bobagem for descamada como uma cebola e alguém, com fome de gurus e discursos, disser: “você sabe que eu nunca tinha visto isso dessa forma? Obrigada, deusa”. 

Narcisismo expressado aos berros é complexo de inferioridade. O genuíno narciso, raríssimo, se basta: ele sabe que é melhor, que é bonito, que impera, e não dá a mínima para a opinião alheia. Ele não diz aos ventos a cada instante “eu não dou a mínima para a opinião alheia”, entenda-se. Ele simplesmente não dá a mínima. Já o narciso fajuto precisa se vender justamente porque é muito inseguro, ele necessita que os outros o amem para que ele se ame. Seu encontro consigo mesmo não se dá na solidão da olhada no espelho ou no reflexo do rio, mas na fotografia viralizada dele se olhando no espelho ou no reflexo do rio: não é “eu me amo” seu lema, mas “vejam como eu me amo” – completamente diferente, pois depende de público. O narciso fajuto quer que os olhos dos outros sejam rios onde ele vai ler que é bonito, que tem valor. Este ano uma feminista negra, “filósofa”, disse pela centésima vez que era linda e sábia. Uma feminista morena, “socialista”, disse que a achava feia. A “filósofa” tentou se blindar do choque de o rio ter cuspido em sua cara aquilo que a perturba lá no fundinho, aquilo que a faz choramingar quando os espelhos nos olhos dos outros dormitam: usou ironia, convocou o bloco monolítico (veio trotando em sincronia), jogou a carta da angústia travestida de superioridade e afirmou, num surto de megalomania e despreparo com números, que 180 milhões de brasileiros a amam. Era de sentir pena tanta demonstração de desespero. Quando alguém faz dessas no pronto-socorro de um hospital, logo o enfermeiro aparece para acalmar o surtado e tirá-lo de cena colocando um casaquinho nos ombros dele. Numa reunião de família, vão enrolá-lo num cobertor e recomendar “venha, vamos dormir, já passou da hora de tomar seus remédios”. Na internet o surtado provoca uma epidemia em vez de a plateia entender que precisava de ajuda. A diferença entre o narciso real e o falseado é a diferença entre o tomate e o Nescau no supermercado: o tomate, boníssimo, está nu e despreocupado, porque não precisa se afirmar com nada, não precisa de um pacote de autoelogios; lá no outro corredor o Nescau, que é ruim, trabalha uma ilusão em seu exterior e sente a urgência de se atestar como vitaminado, gostoso, nutritivo, mágico. 

Repulsa ao conhecimento sóbrio e ao contraponto é ignorância voluntária: as professoras de feminismo “se doutoraram na vida” e não estão dispostas a aprender. Mas fingem absorção humilde quando ouvem alguém defender aquilo que elas já pensavam ou quando vão a oficinas como “Radicalize-se: (des)dobre o origami da opressão e descubra o cerne das relações de micropoder”. (Parênteses no meio das palavras costumam ser péssimo sinal; mas sinal dos tempos de fato será quando usarem colchetes e chaves.) Não são refutados argumentos, mas pessoas, e é em nome do ódio ao contraponto que se apela para a guerra das vaidades. A ciência é negada: bom mesmo é estatística feita com método errado – eu ia escrever “duvidoso”, mas não gosto de eufemismos –, astrologia (quando uma feminista é ateia e fã da determinação dos astros, já se sabe: não é ateia por motivo racional e científico, mas porque Deus e a religião representam poder, patriarcado, etc.) e “vivência”. Vivência: mas quem vive o mesmo e conclui o oposto só pode estar fazendo uma leitura errada de mundo. 

“O feminismo é importante para nós porque é necessário para mim” deveria ser a síntese do que esse movimento representa hoje. Não é prioritariamente sobre mulheres que sofrem, é sobre a vaidade das mulheres que alegam sofrer. E nisso se assemelha tanto a toda futilidade que diz combater nos homens. Padrão de beleza, por exemplo. Há feministas que “querem porque querem” ser consideradas bonitas em casca, mesmo que sejam desproporcionais, assimétricas e paquidérmicas. Pensam, com isso, que estão dando um banho de “desconstrução”, só que na verdade estão dançando a mesma música que os homens adoradores de padrões de beleza colocam para tocar. Por que em vez de “todas são bonitas” não se batalha pelo “beleza física nem sempre é importante”? Vaidade, simplesmente. Eu me nego a chamar de bonitas pessoas que considero feias de maneira acachapante. Nem por isso estou desmerecendo quem quer que seja, porque, na minha concepção, beleza não é fundamental – se pudesse escolher, teria ao meu redor gente inteligente, higiênica e aberta ao humor, não gente bonita que não sabe fazer nada. Agora vejamos sobre esse tema a alienação feminista em passos: 

1. O dito patriarcado determina que beleza é fundamental.

2. O feminismo da terceira onda compra essa ideia e corrobora: beleza é fundamental. (Não me lembro de as outras ondas terem reivindicado “somos todas lindas”; acho que aquelas ondas eram mais envolvidas com a questão política do que com a questão trivial e coitadinha da bruxa moderna que não aguenta ver o espelho dizendo que a Branca de Neve tem traços mais harmoniosos.)

3. Patriarcado e feminismo estabelecem uma parceria, um consenso: beleza é fundamental.

4. Se a beleza é fundamental e precisamos combater a sociedade de classes (porque a luta se manifesta mesmo no quesito estético, e a estética é parte do motor da história), nada mais justo do que estimular essa grande osmose que vai diluir as belezas, balanceá-las e permitir que todas as mulheres sejam bonitas.

5. Que conversa é essa de mérito? Não há mais bela e menos bela, todas as mulheres são belas.

É até contraditório que se busque tanto uma aprovação de beleza enquanto se condenam figuras de beleza. “Não chamo minha filha de princesa”, diz uma para logo depois declarar que o adjetivo “linda” é moeda corrente na educação da criança – como se isso fosse essencial, virtuoso. Não adianta berrar, não adianta tatuar, não adianta pregar para as convertidas que vocês são lindas se vocês não são. O esquerdismo tem dessas: não aguenta ver que alguém se destaca, é preciso mediocrizar, nivelar tudo. 

Uma cantora feia (de maneira indubitável) aparece. Canta bem. O “patriarcado” grita que ela é feia. O feminismo, que não quer fazer autocrítica estrutural e por isso permanece numa estúpida dicotomia com o propalado inimigo, diz que a cantora é bonita e que “precisamos falar sobre belezas diferentes”. O que deveria se retrucar é: por que uma mulher que vai cantar precisa ser bonita? Ela não deveria apenas saber cantar? Quando uma cantora precisa ser bonita? Exatamente, quando não sabe cantar. 

Existem pessoas sem dúvida feias, pessoas sem dúvida bonitas, e belezas relativas. Desde criança me incomodo com as perguntas sobre a beleza daqueles para os quais manifestamos interesse apaixonado ou amoroso. (Chamo isso de criança visionária, enquanto vocês todos sempre me chamaram de criança estranha, mas tudo bem se eu trouxe a luz elétrica para o vilarejo antes de vocês terem entendido a importância da vela.) O que faço com uma pessoa que é apenas bonita? E como eu conviveria com uma pessoa que só tinha isso como trunfo? Se meu objetivo é “a beleza plena acima de todas as coisas”, vou construir minha casa rústica no meio de um campo florido, e não querer conviver com quem apenas satisfaça a matemática da estética com um corpo lindo em cada quadrante. O feminismo deveria ser sobre “a beleza não é o mais importante” (dizer que não é nada importante é mentira) e não sobre o autoritarismo de querer forçar todo mundo a achar que Claudia Schiffer e Jocelyn Wildenstein são igualmente belas. 

Empoderamento é uma forma mentirosa de vaidade autossuficiente. “Eu me visto para mim”, “uso salto para mim” e “uso maquiagem para mim” são coisas que na imensa maioria dos casos não procedem. Quase nunca saio sem pelo menos um pouco de maquiagem. E essa maquiagem é para vocês. A prova disso é que não tenho o hábito de usar maquiagem em casa: em casa, apenas passo sombra nas partes ralas das minhas sobrancelhas e um pouco de blush se estiver pálida. Para mim, de verdade, portanto, importa não ter sobrancelha rala nem rosto pálido – batom e pó compacto eu passo para os outros. “Salto para mim mesma” só faria sentido se a dona dessa sentença usasse salto ao estar sozinha em casa: acorda no domingo, coloca salto e vai lavar a louça, ver TV, ler um livro. Isso é “salto para mim mesma”. Se você só usa fora de casa, seu salto é para os outros, não minta que se adora tanto assim, não forje narcisismo. Poucas mulheres fariam questão de se depilar se fossem viver uma temporada numa ilha deserta – mas adorariam ter uma lâmina de depilação se soubessem estar próximas do resgate. Como é confortável a franqueza e como é nojenta a encenação desmedida. 

A terceira onda quer abortar quando bem entender “porque o corpo é da mulher e ela faz o que ela quiser” (segundo mês, sétimo mês – não importa, porque ciência do desenvolvimento fetal não importa, o que importa é a empoderada mimada). A terceira onda quer que mulheres não sejam interrompidas por homens – problema de gênero, segundo elas, mesmo que eu consiga reunir 200h de vídeos em que fui interrompida por outra mulher no que certamente era apenas uma fabulosa sessão de sororidade que não percebi. Problema humano de modo geral e de falta de educação agora é “problema de gênero”. A terceira onda quer mais investimentos em universidades para “pesquisas” sobre gênero nas especializações sobre gênero que publicam inúmeras revistas sobre gênero que nem as próprias “profissionais do gênero” leem – isso é mais importante do que atividades de laboratório. A terceira onda se arroga o direito de falar em nome de todas as mulheres quando decreta que “nenhuma mulher gosta de assovios e gritos de 'gostosa' na rua”, quando, bem, a realidade não se adapta a esses dados inventados. A não ser, claro, que as fofinhas feministas burguesas não gostem da estima exteriorizada desses trabalhadores – em locais pobres, certos tipos de pedreiros distribuem felicidade com seus panegíricos. A terceira onda mente que “nunca é a roupa que faz uma mulher ganhar um assovio ou ser assediada”. Pergunto: quando uma moça bonita muito coberta e uma não tão bonita de trajes mínimos passam por uma construção, quem tem maior chance de receber os “elogios” dos pedreiros? (Não estou falando de certo e errado, estou falando do que acontece.) A terceira onda, ao discutir entre si, é a baixeza daquele diálogo primário entre a “filósofa” e a “socialista” que citei acima: se uma critica a outra, a outra diz que é inveja da exposição, inveja porque escreveu livro, inveja porque é convidada a ir à Globo (a “filósofa”, aliás, sempre que contestada usa o coringa “inveja”). Não difere muito do teor de discussões de mulheres “barraqueiras” resolvendo suas picuinhas “na casa mais vigiada do Brasil”. A terceira onda mente que mulheres gostam ou podem gostar de sexo tanto quanto homens, ou mais. Excetuando o caso de viciadas em sexo – que é uma condição patológica, triste e tratável (lembre-se que viciados em sexo podem muitas vezes precisar se aliviar, na urgência, com mendigos) –, dizer que uma mulher gosta de sexo tanto quanto um homem é desconhecer a biologia, o papel dos hormônios e a cabeça de um homem. A finalidade de mentir sobre esse assunto é massagear a vaidade, para sentir a delícia de fazer com que os outros achem que se é muito sensual. Claro, queridas: vocês certamente correm com frequência para o banheiro quando estão com muito tesão e têm certeza que continuarão assim aos 60, vocês certamente se igualam à quantidade de masturbadas diárias de rapazes na puberdade – no mínimo três, no máximo a esfola –, são os parceiros de vocês que inventam que têm dor de cabeça ante insistências incômodas. Claro. Tudo muito verídico. Essas proclamadas famintas são os Cadernos Pagu recebendo um sopro da revista Nova. Há mulheres que lamentavelmente nunca gozaram na vida (não culpem somente os homens “que não souberam fazer”; foquem em ensiná-las a descobrirem seus corpos sem nojo), mas as “deusas da terceira onda” nunca podem ser saciadas porque estão eternamente ávidas. É uma competitividade mórbida: essa feminista não quer gostar de sexo de modo saudável de acordo com o que a natureza lhe dá – ela tem tanta obsessão por odiar homens que só se satisfaz quando fantasia que seria capaz, ela, de engravidar pelo menos 365 pessoas num ano. O sexo é uma dádiva da evolução: maravilhoso, natural e simples. Por que o feminismo quer transformá-lo em farsa, ganância, “luta”, concorrência, soberba?

Um “feminismo” que esperneia como uma criança no supermercado se jogando no chão quando quer alguma coisa desnecessária – que ele me ligue no dia seguinte como prometeu, que as pessoas me achem bonita, que me deixem falar meu monólogo até o final, que eu possa chamar de assédio se tiver vindo de um homem feio, que eu possa chamar de estupro se me arrepender depois, que eu não tenha que provar minhas acusações porque o que importa é a palavra da vítima, que eu possa me sobressair sobre estudados porque tenho vivência, que eu não precise assumir minha ignorância quando um homem quiser me ensinar o que não sei – não pode, não deve, ser levado a sério e nem atendido em suas exigências. Não se renda às exigências triviais feitas aos gritos: da próxima vez não deixe essa mimada ir junto ao supermercado. 

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NOTAS

1. Em terreno polarizado, é preciso explicar o básico para não entrar na roda: há muitas pautas feministas importantes (aborto até o terceiro mês, masturbação feminina, desvencilhamento do pacote casamento + filhos, divisão de tarefas, educação infantil livre de imposições limitadoras, combate à violência doméstica). Meu asco é sobre a terceira onda, que não é um movimento político, mas um movimento de estímulo das vaidades, de adoração a personagens pitocos transbordando prepotência e de resposta à vontade animalesca de agrupamento. Se você é “contra o feminismo”, saiba que não estamos no mesmo barco. 

2. É incrível como algumas pessoas são bonitas. Mas e depois? Ou: mas e o que mais? A mera beleza basta a mulheres fúteis e homens babões, mas, francamente, o que faço numa mesa de bar sentada com Marina Ruy Barbosa e Zara Larsson? A companhia de Willem Dafoe e Steve Buscemi – que não considero feios, mas que estão muito longe do “padrão” (e que por isso são tidos como feios por muita gente) – traria melhor proveito, sem dúvida. 

3. É multifatorial o problema das mulheres que não gozam (muitas até pensam que talvez gozem). Uma cultura do pudor, do nojo que a mulher deve sentir pelo próprio corpo, a dificuldade de alcançar o que se deve (enquanto no homem a natureza trouxe tudo muito escancarado, como uma ferramenta que o colega dele pede na oficina mecânica e “tá na mão”), intromissão religiosa quando Jesus nunca deu um pio sobre o assunto. E é um problema que não deve ser menosprezado, pois traz infelicidade tanto para ela quanto para ele quanto para elas (num casal lésbico). Achei perfeita a comparação que um dia fizeram com um espirro: não apenas porque se manifeste como um “atchim” a caminho, mas porque ninguém tem dúvidas se espirrou ou não. Ninguém diz “olha, eu acho que espirrei” ou “tenho a impressão de que espirro junto com meu marido todas as noites”. 

4. Mulher que diz gozar exatamente ao mesmo tempo que o parceiro: uma iludida ou, essa sim, uma deusa em sintonia perfeita com um deus. Vocês na neve, vem um vento gelado, as roupas não são suficientes: qual é a probabilidade de você e seu parceiro espirrarem juntos? Pois é. 

5. É possível se afastar, mas não adianta negar: nossa natureza influenciou o desenvolvimento da nossa cultura. Há motivo para homens gostarem de mulheres bonitas. Há motivo para mulheres gostarem de homens com dinheiro. “Isso é tudo cultural” – sim, mas como fruto da árvore da natureza. Mulheres lindas casadas com bilionários feios é algo comum, mas é raro que bilionárias feias consigam se casar com homens lindos. Revistas de homem nu não fizeram sucesso. Homens que ganham menos que suas parceiras são comumente tratados com leve desprezo por elas – e são fortes candidatos a serem traídos se além disso forem completos bananas. Homens não costumam gostar de mulher-macho, mulheres não costumam gostar de homens afeminados. Casais de mulheres têm uma fidelidade muito maior que casais de homens: até no mundo homossexual a vontade carnal do homem de “diversificar” se manifesta. Acho muitas dessas coisas ruins – mas é minha opinião sobre um dado. Negar a natureza não vai apagá-la. É melhor tentar trabalhar com ela.

domingo, 26 de novembro de 2017

Notas sobre lugares: Blumenau, clima e outras coisas


Há um provérbio sueco que diz: “não existe tempo ruim, apenas roupas inadequadas”. Gosto dele porque incentiva a adaptação, conduta morta nestes tempos em que todo mundo é infeliz por qualquer coisa adversa. Divago (sempre divago quando invento de falar “destes tempos”). O que quero dizer é que o criador desse provérbio nunca passou um verão em Blumenau. 

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Blumenau é uma cidade úmida que fica no Vale do Itajaí, estado de Santa Catarina. Do Sudeste para cima a maioria do povo pensa que o Sul é uma Suíça, com friozinho o ano todo e fondue. Mas garanto por mim e pela fala de outros: o calor de Blumenau é um dos piores, se não o pior de muitas jornadas. Não há apenas calor, há mormaço. E o mormaço desmotiva o trabalho, aumenta a força gravitacional, rouba a humanidade. Meus piores desejos aos meus pares vieram quando eu voltava da escola ao meio-dia e fazia um longo trajeto no sol. Não por acaso, nessa época li O estrangeiro, do Camus. Tornou-se meu livro predileto por tantas coisas, e uma delas foi essa concepção de um homem matar outro por causa do sol. Passei vinte e cinco anos no mormaço de Blumenau, sei o que é ter vontade de matar alguém somente por causa do calor. 

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Um dia saí para festejar meu aniversário e tomei meu primeiro Negroni. Se um dia eu tiver câncer no esôfago, culparei com toda certeza aquele coquetel, que desceu como uma invasão viking. E se um dia eu tiver câncer de pele – já que o efeito maléfico do sol é cumulativo –, culparei com toda certeza minhas andanças em Blumenau na volta do colégio ao meio-dia. 

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Padrão de clima em Blumenau: de dezembro a maio, muito calor e mormaço, com tempestades no final da tarde que levam sacolas, telhas e árvores; de junho a setembro, frio com muita chuva, as roupas não secam, é muito fácil que tudo cheire a cachorro molhado, o mofo é o Demogorgon da cidade; outubro e novembro são os meses em que há forte expectativa para a próxima estação: “se já está assim, imagine no verão”. 

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Todo inverno era a mesma coisa: como a umidade estava no auge, os tecidos viviam molhados. Então antes de dormir eu passava a ferro minha cama, meu edredom e meu travesseiro. 

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Paulistanos são dramáticos com mudanças climáticas. Faz um calorzinho que jamais se comparará ao de Blumenau e eles passam o dia tecendo comentários e criando matérias jornalísticas diversificadas para provar recordes: “o dia mais quente de fevereiro dos últimos vinte anos”, “a semana mais quente dos outonos desde Maluf governador”. Bate uma brisa que jamais se comparará ao frio de alguns invernos em Blumenau (lembram, catarinenses, daquele inverno quando tivemos “os alpes da Palhoça”?) e eles, desesperados ou jecas, já estão de botas, casacos, cachecóis e gorros. Chuva para eles também é sinônimo de frio. Se chove lá fora em pleno verão, eles não saem sem casaco. Dirão, talvez, que é apenas receio da água batendo na pele. Pergunto-me como tomam banho. 

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“Como colonos alemães resolveram se estabelecer em Blumenau com esse clima?”, perguntou meu namorado ao passar seu primeiro verão mórbido na cidade. Vale lembrar que o Dr. Hermann Blumenau voltou para a Alemanha anos depois da colonização. Sábio ele. Tenho uma forte ligação com o lugar onde nasci, vez ou outra caio ébria num espiral nostálgico sobre tudo que vivi lá e não está mais (sou do tempo em que havia cinco alfarrabistas, sendo três Book Center e mais dois Querche: hoje há apenas um Book Center num salão que perdeu todo o ar intimista de sebo), mas não penso em voltar para morar. Não é por causa da mentalidade de germânico do interior, não é porque sempre tem gente estranha com aspecto maníaco perto do Angeloni da Fonte, não é porque as exposições de arte costumam ser uma droga. É simplesmente por causa do clima. 

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O comércio ajuda a refletir o tempo. Não há mais nenhuma banca de revistas na Rua XV de Novembro, a principal rua do comércio de Blumenau. Se você quer um jornal, deve comprá-lo no supermercado. No Shopping Neumarkt, três locais antigos e tradicionais fecharam esse ano: a Bruneti Discos, a confeitaria da Glória e a banca de revistas. Com isso, concluí que não existe mais nenhuma banca de revistas na região do Centro. Há dez anos elas eram várias. Agora, a cidade está transformada num terreno fértil para farmácias, lojas de produtos naturais e barbearias. Casinhas antigas com porão (!) vieram abaixo para que farmácias fossem construídas no lugar. Obviamente não gosto do que vejo. Faço parte do grupo de todas as pessoas que saem de suas cidades de origem e quando voltam para visitas reclamam que elas não são mais tão boas como costumavam ser. 

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Vou a Blumenau uma vez por mês. Em São Paulo me dizem: “ai, que gostoso”. Imaginam que farei tricô em frente a uma lareira enquanto saboreio pinhão cozido e bebo chocolate quente. Um gato preguiçoso vai se enroscar nas minhas pernas e depois se ajeitar delicadamente na almofada de veludo, onde é acariciado pela minha mãe, que está com luvas. Vamos à realidade: não faz nenhum sentido ter lareira em Blumenau, tricô só é feito no inverno, gatos deitam no piso frio aparentando enfarto por causa do calor e nunca, nunca vi minha mãe usar luvas. 

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Em São Paulo os médicos querem tratar especificamente as reclamações dos pacientes, ao que parece. Em Blumenau qualquer pessoa com três quilos de sobrepeso que vá ao SUS por causa de um resfriado receberá de bônus uma recomendação para que emagreça. Uma vez eu estava vomitando até o jantar de dias anteriores, fui a um posto de saúde, vomitei lá também. Na hora de ser atendida na triagem, a técnica de enfermagem, que viu minha situação, sentou-se na minha frente e lentamente calculou meu IMC. E me disse: “você precisa emagrecer pelo menos um quilo para entrar na situação de peso normal”. Infelizmente eu estava tão mal que tinha perdido minha veia sardônica. Podia ter dito: “se eu vomitar mais um pouco talvez consiga”. Cabe uma ressalva: esse tipo de atendimento a-gordura-é-a-causa-de-todos-os-males foi padrão no serviço público de atendimento, não vi a mesma coisa quando fui atendida em consultórios particulares. Já que em São Paulo nunca fui atendida no serviço público de saúde, não sei dizer bem como é o tratamento, talvez isso de que reclamei em Blumenau possa ser uma medida nacional recomendada pelo Ministério da Saúde: “não existe má hora para falar sobre perda de peso, toda hora é hora”. 

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Blumenau para mim é, pensando em épocas variadas, a finada Rádio União – meu pai costumava preparar o café da manhã ouvindo o programa que tocava música alemã tradicional, aquela com muita tuba e muito acordeon –, a Antena 1 – que hoje é apenas 30% boa –, a Rádio Atlântida – que hoje é puro horror –, os sebos, a Biblioteca Municipal com suas funcionárias sisudas para adolescentes (nunca me perdoaram as pontuais bagunças que eu fazia com amigos, não importa a quantidade de livros que eu tomasse emprestado), o cheiro de maconha aqui e ali nas ruas e matos, a Livraria Alemã (hoje fechada), a PROEB (hoje Vila Germânica), o euro dance nos anos 90 que eu captava dos sons alheios e adorava (Ace of Base, Gala, 2 Brothers on the 4th Floor), a luta entre os locais e os que imigravam, bares se transformando em igrejas, as festas juninas com cachorro quente com chucrute, os shows na “Prainha” aos quais eu nunca fui porque era muito criança (uma amiga mais velha viu Skank lá, e aqui eu gostaria de manifestar um sentimento que chamo de “inveja ao contrário”), o Parque Tupã, os cafés coloniais, a TV Galega, os paranaenses do interior formadores de guetos, o chimarrão diário e as rodas de chimarrão, os jogos de canastra, os velhos de chapéu que ficavam nos terminais de ônibus e arredores dando balas para meninas como pretexto para alisá-las, pessoas com deficiência descritas como “ele vai na APAE” (ninguém dizia “Fulano tem uma deficiência”, mas com o “Fulano vai na APAE” dava para entender tudo), a Rádio Menina e o boom de música gaúcha que vivemos, o Colégio Pedro II com seu uniforme inconfundível (entre os pobres havia algum frisson se alguém estudasse lá, mesmo sendo público), o Colégio SOS (que não existe mais), as histórias lendárias sobre túneis que levavam freiras para a danação da carne ou nazistas para encontrar outros nazistas, as histórias elaboradas sobre o Teatro Carlos Gomes ter sido feito como uma homenagem a Hitler (“dá para ver pelo formato da construção”), as histórias sobre o professor de História do Energia que era nazista (o mesmo que teve sua piscina com uma suástica no fundo fotografada por um helicóptero anos depois em Pomerode; seu filho “Adolf” estudou no mesmo colégio que eu por um tempo e era “uma sensação” com aquele nome e com aquele pai), os cursos na Fundação Cultural (foi lá que aprendi a tocar violão e a fazer cerâmica), a Rua Araranguá e a Rua Pedro Krauss rivalizando como os piores becos, o bullying em excesso nas escolas (principalmente nas públicas), as procissões das igrejas católicas, a popularidade da danceteria Rivage, a Sessão da Tarde passando nas lanchonetes, o comprar “massinha” na padaria (pão doce com farofa, basicamente), os alagamentos com as chuvas. Isso só para citar alguns exemplos. 

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Falo de Blumenau como a terra da umidade, mas este ano visitei Buenos Aires pela primeira vez e descobri que o nome da cidade só pode ser ironia. Os prédios são muito úmidos, você entra e é abraçado pela névoa. Nos restaurantes os guardanapos estavam sempre molhados, as paredes dos banheiros escorriam, às vezes colocavam um aquecedor no ambiente para ajudar a desumidificar, mas isso não contribuía com quase nada. Era frio. No calor, imagino que haja muito mormaço.

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Buenos Aires tem locais muito bonitos, mas é superestimada. “A cidade europeia da América do Sul” é um exagero. Algumas atrações turísticas são vãs: não entendo o que há de mais naquela flor metálica que abre e fecha na Praça das Nações Unidas. Já não existem moedas por causa da inflação. Qualquer comidinha custa muito para a nossa conversão. O Museu Nacional de Belas Artes, que é bom, tem entrada gratuita. O Museu Jorge Luis Borges é pequenininho e não muito convidativo, mas tem seu valor para quem gosta do escritor. Os ônibus parecem feitos para grupos de circo. Um livro que no Brasil custa por volta de 25 reais está por 100 reais na Livraria Ateneo, que só vale a pena para conhecer, e não para comprar alguma coisa. É assustadora a quantidade de cocô de cachorro nas ruas. Há construções antigas bonitas (em parte é por causa delas que chamam Buenos Aires de europeia), há parques bem cuidados, algumas ruas são agradabilíssimas. 

Ônibus à moda circense em Buenos Aires

Bairro de Palermo

Escultura "Centauro", de Antoine Louis Barye,
no Museu Nacional de Belas Artes de BA

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Falo mal da flor metálica que abre e fecha em Buenos Aires, mas ela não é das piores invenções de ponto turístico. No Brasil muitas cidades têm o hábito de construir grandes arcos nos centros ou nas fronteiras para que o turista considere aquilo como mais uma atração onde bater ponto e tirar foto. Não é bom sinal quando um desses arcos, que não fazem nada e sequer são bonitos, figuram entre “as 10 maiores atrações da cidade” segundo o Trip Advisor. A clara intenção disso é inflar o número de locais de visitação: “temos o rio, temos o museu da história da cidade, a pedra da inauguração… e temos os arcos”. 

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O pior frio que passei em viagens foi em Budapeste (Hungria), em janeiro de 2015. Muitas pessoas têm o hábito de pensar, consciente ou inconscientemente, “comigo isso não vai acontecer”. É assim que dirigem bêbadas, não usam cinto de segurança, lançam-se de paraquedas, fumam e exageram no consumo de açúcar. Comigo é o oposto, muitas vezes penso “é comigo que vai acontecer”. Casos bizarros e excepcionais de quem morreu engasgado com um pedaço de maçã me levam a comer mais devagar, em viagens de ônibus (mesmo se for de São Paulo a Santos) sempre uso o cinto, etc. No inverno de Budapeste, houve um momento em que achei que ia morrer de hipotermia. Estava no alto de um morro, de onde é possível ver toda a cidade e onde não havia local fechado para aquecimento. Mas minha indumentária de astronauta não bastou, e senti meus pés doendo muito e ficando duros de congelados. Então me lembrei do caso de pessoas que perderam pés ou mãos por causa do frio, e pensei “pronto, vou virar esse tipo de estatística”. Horas depois voltei ao normal, mas ainda temi um pouco possíveis consequências posteriores. Nem sempre é bom ter certos conhecimentos. 

Lençol de neve em Budapeste

Parte da cidade de Budapeste

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O pior calor que passei em viagens foi em Pompeia (Itália), em 2014. No meio das ruínas do vulcão e sem nenhuma proteção de telhados, o sol torrava a pele sobremaneira. Não é à toa que pessoas morrem no verão italiano por causa do excesso de calor. 

Um pedaço da destruída Pompeia

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Clima bom é o clima invisível, aquele que não gera muito falatório para pessoas normais – pessoas anormais sentem um assoprar e já começam a esfregar seus bracinhos e tagarelar sobre o frio, ou sentem um pouco de calor e começam a fazer trejeitos de quem vai explodir. Não gosto nem de lugares muito quentes, nem de lugares muito frios. Não vejo graça em “ver neve” e penso que é preciso um trabalho interior muito grande para aprender a gostar de tirar neve da porta de casa com uma pá (esse trabalho interior funciona, foi assim que aprendi a gostar de passar roupas). O clima bom permite o uso de roupas numa quantidade confortável: se está calor, uma bermuda e uma camisa, se está frio, uma calça e uma blusa. Nada de camadas de roupa que impedem a execução de movimentos, nada de quase nudez com peças de viscose e ainda assim sentindo vontade de se abanar. E já que o tal clima bom dificilmente acontece o ano inteiro, o melhor é se acostumar e naturalizar o que está dado. Hoje, com o mundo como é e com as pessoas como são, toda vez que entro num táxi tenho vontade de avisar: “boa noite; olha, o senhor pode ir pulando o papo sobre o tempo, pois que está calor e que vai chover no final da tarde todos nós já sabemos”. 

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Mas que o clima em Blumenau é horrível, ah, isso é.

domingo, 8 de outubro de 2017

Pesquisadores que são salsicheiros


Não somente o vento dos acontecimentos me agita conforme o rumo de onde vem, como eu mesmo me agito e perturbo em consequência da instabilidade da posição em que esteja.” 
Da incoerência de nossas ações – Montaigne em Ensaios

Muitas pesquisas acadêmicas são como salsichas: se quem as consome soubesse como são feitas, não as consumiria mais. A diferença na obstinação em continuar consumindo algo de péssima procedência é que as salsichas podem propiciar o câncer, enquanto os danos dos trabalhos acadêmicos feitos da costura dos restos menos nobres de animais humanos podem não trazer esse aviso de perigo mortal. “Não creio, uma má pesquisa pode matar.” É fato, só que más pesquisas endossadas por sérios estudiosos raramente – portanto, muito pontualmente – aparecem, são propagadas e matam. Foi o caso, dentre os contados nos dedos nas últimas décadas, da pesquisa que vinculou a vacinação ao autismo. Também é fato que esses casos pontuais provocam estragos que se arrastam por gerações: não é preciso andar muito longe no campo das redes sociais, que escancaram na praça as vísceras dos nossos conhecidos, para encontrar quem incentive uma nova revolta da vacina “porque os médicos, a indústria farmacêutica e os governos mancomunados querem que as crianças tenham autismo para que todos lucrem mais”. Não sou amigável à comunidade médica (psiquiatras principalmente), à indústria farmacêutica (passei anos sem gastar um centavo com medicamentos) e a governos (fora Lula, Dilma, Temer, Aécio, Gilmar Mendes, etc.), mas meu asco é muito maior a teorias conspiratórias, especialmente quando vindas (se é quem vêm de outro lugar) da cabeça de gente ignorante que não entende nada do assunto e sequer se deu ao trabalho de fazer uma pesquisa rasa em bibliotecas sobre o que era para ela suspeito. Mas divago: quero falar das pesquisas feitas em massa que se parecem com salsichas. Essas que você consome porque são convenientes e aparentam confiabilidade. 

Citação de estudos é o novo pretinho básico: todo mundo tem um no armário para ficar elegante com facilidade. E os estudos citados podem corroborar qualquer coisa. Na área da nutrição, por exemplo, que muitos céticos chamam de pseudociência – com dose de razão, Ben Goldacre considera que nutricionistas são charlatões e até mandou comercializar uma camiseta em que se lê “nutricionista” embaixo da imagem de um pato (quack é “charlatão” em inglês) –, fanáticos por dietas restritivas sempre têm uma lista de estudos na manga comprida da blusa para apresentar caso sejam colocados em dúvida. O erro já começa na alusão ao apocalipse alimentar, mas piora conforme o fanatismo adere a uma corrente específica: açúcar jamais, glúten mata mesmo os não-celíacos, carboidratos são veneno, farinha e arroz são carboidratos cancerígenos, etc. Eu francamente não tenho tempo de analisar os estudos que todo mundo me aponta para justificar sua alimentação restritiva, mas sei que cada iludido consegue arrolar dezenas de “pesquisas honestas” para explicar como vive maravilhosamente bem. Adeptos da dieta paleolítica – que comem basicamente carnes, ovos e plantas – e da dieta crudívora – que comem apenas alimentos crus ou aquecidos somente em baixíssima temperatura – sempre falam em “estudos”. O básico é que as populações mais longevas do mundo não são nem paleolíticas, nem crudívoras: japoneses, por exemplo, comem pouquíssima carne, muito arroz e muitos derivados de soja. Paleolíticos e crudívoros – e os “estudos” que os embasam – querem buscar nos antepassados a alimentação adequada que protege contra doenças e confere vida longa, mas que diabos: desde quando nossos antepassados devem ser modelos literais de saúde? Viviam pouco, tinham que comer o que estava disponível sem cerimônias, podiam não padecer das doenças que nos acometem, mas padeciam de tantas outras. Não, para os profetas do apocalipse alimentar extremo não basta excluir processados, ler rótulos, moderar o que se torna vício (álcool, açúcar, farinha de trigo): é preciso que exista um modo de alimentação tão hermético que funcione como uma religião conservadora. 

Quanto aos estudos sobre os quais não tenho tempo de me debruçar – trabalho 35h semanais, durmo no mínimo 8h por noite, não me resta muito tempo para ficar desafiando e contestando cada lunático que surge com “novidades fundamentadas” –, às vezes uma passada de olhos já denuncia a trapalhada: pesquisas feitas com dez, quinze, trinta pessoas que “revelam” informações na base de “56%, 61%, 63% dos pesquisados” querem dizer o quê? Querem dizer que precisamos de estudos mais aprofundados, com uma amostragem muito maior, para bem julgar os resultados obtidos na prévia. Eu sei, há quem se pense cientista com uma amostragem de uma, duas, três pessoas – “minha mãe não me amamentou e estou vivo até hoje, logo a amamentação é desnecessária”, “bebo água de torneira desde sempre e nunca morri nem adoeci, então essa história de água mineral, de água melhor tratada é coisa do comércio criando demanda”, “na minha casa não compramos orgânicos e não temos problema nenhum com isso, logo provamos que o comércio de orgânicos é apenas um nicho de mercado”, “Bibi Ferreira tem 95 anos, diz que nunca praticou exercícios e bebe Coca-Cola todos os dias; assim concluímos que exercícios físicos são desnecessários e que Coca-Cola não faz mal” –, mas isso fica no terreno coloquial onde o achismo é rei e primeiro-ministro: ninguém chama a colega que infere coisas sobre o universo baseada em sua experiência pessoal de “estudiosa” ou “pesquisadora”. Mas estudos de dois meses feitos com dez pessoas que mostram uma tendência 2% maior de hipertensão no grupo de cinco que comeu pão todos os dias – esses “estudos” entram para a lista do pânico dos que tratam farinha de trigo como heroína. A desgraça, infortunadamente, não fica apenas do lado do pleno leigo que interpreta o que leu na Seção Mundo Bizarro do jornal: há pesquisadores que fazem esses estudos de quintal, concluem coisas e tratam suas realizações como trabalhos sérios e dados prontos. Num planeta globalizado, um débil sempre achará outros débeis maiores para concordar com ele e divulgá-lo. 

Aqui parece que falo apenas da deep web de informações falsas, capengas, aleijadas onde mergulha o grosso de quem tem carência afetiva e precisa achar deuses em todo lugar: o deus político, o deus alimentar – que se manifesta na forma de “o limão é uma panaceia” ou “a linhaça cura diversas doenças” –, o deus opinativo. É um mar onde se nada de escafandro e às vezes se pensa pedir para cortarem o fio. Mas é bom não esquecer dos gigantes, e vou bailá-los brevemente. 

Liberais vivem numa utopia teórica que é quase tão fantasiosa quanto o que a esquerda planeja como paraíso social. Pensam que o Brasil tem competência, responsabilidade e maturidade para liberar porte de armas para todos; acham que numa sociedade de cada um por si necessariamente surgirão associações caritativas criadas pela espontaneidade dos bem-sucedidos, desejosos de ajudar os pobres; creem que há pouquíssimas coisas (ou nada) que o Estado pode prover e incentivar melhor que a livre iniciativa. Nesse último ponto, liberais se referem muitas vezes à atividade dos mecenas da ciência, que patrocinam estudos sobre temas variados e dizem dar liberdade aos pesquisadores para que concluam o que tiver que ser. Quem acredita nesse sistema no qual o pesquisador sabe que seu patrocinador tem interesse em determinados resultados que o beneficiem? Não digo que os pesquisadores são claramente comprados (apesar de achar possível, imagino que isso seja minoritário), mas a mera informação de que o mecenas tem interesse num dado encaminhamento do estudo pode bastar para que tudo seja subjetivamente, inconscientemente, tacitamente conduzido. Um dos pilares mais importantes das principais pesquisas com pessoas é fazer um teste duplo cego: o pesquisado não sabe que hipótese o pesquisador lançou de início e o pesquisador não faz ideia qual pesquisado receberá o que no meio do estudo para testar sua teoria. Se o pesquisador sabe que está dando um placebo para seu pesquisado 1 e que está dando remédio com princípio ativo para o pesquisado 2, ele, pesquisador, pode deixar passar uma expressão, um tom de fala, um modo de frase que entregue para o pesquisado que tipo de reação se espera dele ao tomar a pílula que lhe é dada. Parece rigoroso, mas é apenas um preceito muito elementar que pesa o papel da psicologia na relação entre pesquisador e pesquisado. Se nesse âmbito menor já é tão importante que o estudo seja realizado às cegas, por que não seria importante que um laboratório inteiro não soubesse quem é que está financiando a pesquisa milionária que será iniciada? Laboratórios que recebem baldes de dinheiro dos barões da indústria geralmente sabem quem os financia e sabem que tipo de resultado seria mais benéfico ao financiador. Podem não pensar “vou conduzir essa pesquisa de modo a agradar ao Sr. Nestlé”, mas a avaria moral já se manifesta no momento em que o pesquisador come o fruto da árvore do conhecimento que delata o interesse do mecenas. Há caso pior, é claro, como quando o proveito é escancarado: em ditaduras que dizem financiar a ciência, o cientista é muitas vezes obrigado a servir ao ventríloquo que o move dentro do laboratório. Mas não vejo motivo para terror quando governos livres financiam pesquisas num processo liso, e dependendo da pesquisa prefiro confiar na conclusão de alguém que atendeu a um edital de pesquisa lançado pelo governo a confiar em quem teve financiamento privado. Não só as pequenas pesquisas merecem nosso ceticismo ajuizado (ceticismo desajuizado é o que os eternos conspiradores carregam consigo), mas também as grandes: saber quem financia um estudo pode ser uma informação substancial para manter uma saudável pulga atrás da orelha. Atenção aos autoritários, aos polarizados: eu não disse que pesquisas financiadas por grandes marcas devem ser usadas para concluir o oposto – “se a pesquisa financiada pela Mondelez conclui que chocolate faz bem, é porque chocolate faz mal” –, apenas incentivei o benefício da dúvida comedida até que outro pesquisador possa provar outra coisa ou ratificar o que foi concluído. 

O sentido da metodologia exposta num trabalho acadêmico não é só o de informar sobre a técnica utilizada, mas de possibilitar que a experiência possa ser repetida por outro pesquisador que queira verificar se atinge o mesmo resultado. Usar a mesmíssima metodologia e não alcançar o mesmo alvo, ou um alvo sadiamente próximo, é mau sinal para o estudo publicado. Excetuando pesquisas com forte cunho de análise de dados quantitativos, qual é a medida das produções da área de humanas que passariam pelo teste com tranquilidade? Não só a metodologia está muitas vezes errada como mesmo seguindo os passos tortos da metodologia errada não se chega ao mesmo lugar. Pretenso Pesquisador: "Eis o mapa: foi assim que cheguei ao que denomino Vale do Conhecimento". Possível Replicador: "Interessante, porque o mapa não apenas é mal feito como seguimos os tracejados conforme aqui está e chegamos a um local completamente diferente". É uma realidade assombrosa, mas somente até você se acostumar a ela: se orientadores de trabalhos acadêmicos já esculpiram seu corpo no colchão dessa pesquisa macunaímica de tanto passarem deitados confortavelmente nele, não há razão para o mais comum terrestre não diplomado deixar de normalizar tal situação. 

Em tempo: há muitos textos da área de humanas que são ensaios e não pesquisas acadêmicas, mas são aprovados como pesquisas acadêmicas. O fato de um texto citar alguns livros não o torna uma pesquisa acadêmica. Já há “artigos acadêmicos” sobre “o golpe de 2016 no Brasil”, e em boa parte deles dá para se ter uma ideia da confusão entre ensaio e pesquisa.

O equivalente, na área de humanas, ao cientista de laboratório que se permite guiar pelo benefício de seu financiador (ele nega a influência, mas isso não quer dizer nada), está no pesquisador que prefere causas a fatos. Esse pesquisador, que geralmente atende a apelos políticos, apelos partidários, apelos sentimentais dos movimentos sociais, não deixará que a razão reine naquilo para o qual ele chama primeiro a paixão, tonta porque inebriada por suas convicções de fé. A imparcialidade é fantasma que nunca se agarra, mas é canalhice de muitos pesquisadores "de humanas" não ao menos tentar. Nessa toada, a pesquisa não informa, mas doutrina. Ou seja, não é pesquisa. 

Para se formar, um graduando precisa passar por dezenas de professores. Depois ele passa pelo cansativo estágio e/ou pelo trabalho de conclusão de curso. Quando você vai ao banco de TCCs da biblioteca de uma instituição de ensino e pega aleatoriamente algumas monografias da sua área para ler, pode ficar confuso. Aquilo é pesquisa. Aquilo foi ratificado por pares. Aquilo recebeu uma orientação, passou por uma banca avaliativa e recebeu aprovação. Aquilo pode ser citado em outros trabalhos acadêmicos. Há trabalhos tão ruins que é de se perguntar se a universidade, que deveria priorizar a formação dos melhores pesquisadores e profissionais, está se tornando um novo ensino fundamental público onde qualquer um que não seja completamente absurdo passa para o ano seguinte. Li um trabalho acadêmico, aprovado, em que a conclusão trazia dados novos que não foram apresentados em momento algum do desenvolvimento. Vi uma pessoa que estava para se formar na especialização juntando materiais para poder usar nas referências e inserir as citações no meio do texto que já estava pronto: não houve pesquisa, houve “escrevi o que penso e agora vou intercalar umas citações de renomados que concordem comigo”. Conheci uma pesquisadora cujo trabalho de reunir todos os dados coletados foi por mim observado: de maneira desarrazoada, elementos que não casavam eram unidos e mal interpretados. Pessoas externas ao que estava acontecendo ali receberiam um artigo aparentemente bem feito e de acordo com a época estudada, mas tendo sabido do bastidor eu sei que parte do que foi publicizado era fruto da pressa e da mera lucubração, e não de um estudo feito com calmo capricho. Leio e ouço desde sempre reclamações sobre ter que citar autoridades sobre o assunto, porque os amadores pesquisadores preguiçosos e nada humildes achavam “ridículo que não possamos pensar com nossa própria cabeça e tenhamos que procurar argumentos de autoridade”. Se você acha que citar quem entende mais do assunto que você é uma poda ao direito de pensar com a própria cabeça, saia da faculdade e monte um blog. Num blog você pode dizer o que pensa e não se dignar a responder caso alguém pergunte que tipo de autoridade você é para opinar sobre o assunto. 

Não consumo salsichas justamente porque sei como – e de que – elas são feitas. Por saber que muitos trabalhos acadêmicos têm o modo de produção semelhante ao das salsichas, consumo estudos com muita parcimônia hoje em dia. Infelizmente, mesmo uma pesquisa lindamente bordada pode ter um avesso tenebroso. E é muito arriscado defender qualquer ideia subitamente aparecida num estudo que possa ser suspeita. Estudo por estudo, todo mundo tem os seus preferidos para citar. Até a homeopatia, que é pseudociência evidente, tem diversos estudos (ruins) "comprovando" seus efeitos. Pesquisa acadêmica é também como estatística: dependendo quem fez e com que objetivos, pode ser uma grande furada. É melhor conhecer tudo o que ocorre nos bastidores antes de acreditar na peça que é encenada. 

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NOTAS

1. Esta postagem terá uma parte II chamada Universitários que são manequins

2. Não acho que eu precise me explicar, mas me explico e até me repito. Não aderi ao veganismo por motivo de saúde, aderi por ética. Não me lembro de em nenhuma fase da minha vida não ter gostado de animais (não gostava muito de ganhar bonecas, sempre queria animais de pelúcia), assim como não me lembro de ter gostado de ou me divertido com tortura, que é tudo o que os animais passam antes de irem para pratos de ególatras. Portanto, veganismo não é dieta, como erradamente apregoam Drauzio Varella e reportagens sobre nutrição na televisão. E só aderi ao veganismo porque ele é possível: se fosse uma aberração alimentar que fosse me fazer mal, eu não teria embarcado nessa e iria apenas “comprar carne de produtores que realizam abate humanitário”. Aberração alimentar é comer pedra e fazer jejum enquanto uma fruta não cai naturalmente da árvore. Aberração alimentar e moral é contar para os filhos histórias bonitinhas sobre galinhas, mostrar os pintinhos abrigados embaixo das asas da galinha em um parque qualquer e depois, à noite, servir frango no jantar. 

3. Não demonizo agrotóxicos (não mais). Sei que com o estilo de vida da população geral seria muito difícil ter fartura de alimentos sem o uso deles. Mas não posso aprovar a história de que “orgânicos são apenas nicho de mercado” enquanto no Brasil são permitidos agrotóxicos que estão banidos na Europa há anos e enquanto auditorias flagram abuso na quantidade de agrotóxicos despejada em certas plantações. 

4. Existem casos de estudos aparentemente “sérios dos dois lados”. Não sei muito bem o que pensar sobre o álcool: há quem defenda que com moderação ele faz bem, há quem defenda que qualquer quantidade dele já aumenta o risco de câncer. Para mim seria muito vantajoso que fizesse bem, porque gosto de beber e bebo com moderação, mas li pessoas que estimo condenando essa angelização do “álcool em doses moderadas” porque há estudos que mostram que mesmo a ingestão com prudência faz mal. Mantenho-me aqui, bebendo enquanto não saem estudos definitivos. 

5. A Cochrane Library faz revisões de estudos sobre temas variados e é uma base segura para avaliar a seriedade e profundidade dos resultados de pesquisas. Alguns artigos são de acesso livre. 

segunda-feira, 31 de julho de 2017

O rol das fórmulas problemáticas e outras abobrinhas


Não convivo em sociedade tanto quanto vocês, mas o pouco de convivência que experimento serve para colocar minhas antenas de fora e captar tudo o que passa com as pessoas, essas figuras interessantíssimas e gravemente defeituosas. Se nem sempre posso fruir a vida em sociedade – porque há um limite para a dissimulação defensiva –, posso ao menos aprender alguma coisa com ela, usá-la para elaborar meus textos mentais (o blog dentro da minha cabeça tem dezenas de vezes mais conteúdo que este, que frequentemente abandono às moscas) e, quando possível, tomá-la como base para criar personagens. Um dos aprendizados que tomei ao realizar tantas observações foi o de entender que todos, mesmo os mais improváveis, têm fórmulas para gerir a vida. E essas fórmulas podem ser boas, mas geralmente são equivocadas e nocivas. Quem pode ser refém delas? Qualquer um que conviva com um “formulador” contumaz. 

Sempre tive receio dos formuladores quando eles tinham algum poder sobre mim: um chefe, um professor, um atendente para serviços que necessito com urgência, um médico. O formulador, quando está muito certo da teoria fajuta que ele acredita ser aplicável de maneira radical, pode destruir minha vida ou, como dizem os coitadistas cheios de não-me-toques, “minha saúde mental”. Experimente “ter o signo errado” quando seu contratador for um aficionado por astrologia que pensa que, de acordo com a data em que nasceu, você só pode ser um problema. Experimente não gostar de crianças ou de cachorros quando tiver uma chefe – e eu ouvi isso de uma superiora – que diz a sério que “nunca é possível confiar em alguém que não goste de crianças ou cachorros”. Francisco Daudt da Veiga, psicanalista que aceitou fazer participações crônicas no modorrento programa da Fátima Bernardes, foi convidado a se retirar após o ápice de suas opiniões polêmicas: disse que não gostava de cachorros. Isso foi demais para os telespectadores, que pediram a cabeça de Daudt porque ele correspondia à fórmula do “somente uma pessoa horrível pode não gostar de cachorros”. Fórmulas como essas podem ser bem danosas, principalmente nas mãos de quem tem autoridade sobre os outros, mas o saco é muito mais fundo. Por isso apresento-lhes O rol das fórmulas problemáticas e outras abobrinhas. Os nomes próprios são somente para exemplificar, portanto são fictícios. 

“Não tenho nada contra a Wanda, ela nunca fez nada de mal para mim.” [Sobre Wanda, que todos sabem ser uma pessoa sem caráter.]

Que planeta ególatra é esse que habitamos onde uma pessoa só pode receber uma avaliação negativa minha se tiver feito algo de forma específica contra mim? Existem alguns modos de eleger alguém como ruim: a) nunca vi fazendo mal a ninguém, mas tem uma personalidade horrenda, b) fez mal considerável ou reiterado a mim, sem motivo razoável, ou c) fez mal considerável ou reiterado a alguém, pelo motivo errado e/ou sem ser uma reação a um mal feito anteriormente. Isso tudo me parece muito justo. Há, no entanto, uma parcela de indivíduos considerados íntegros, pacíficos, de boa índole, incapazes de falar mal dos outros, que se saem com essa quando se fala sobre um notório ímpio: “não tenho nada contra ele, pois nunca me fez nada”. Muito bem, vamos ao drama: Hitler nunca me fez nada. Devo deixar de ter algo contra ele por isso? E Jesus: acham ajuizado que alguém devesse ter tomado as rédeas desse homem que resolveu se opor a tanta gente que não tinha feito nada contra ele? “Jesus, por que o senhor está destruindo o comércio do povo que se instalou no templo? O que ele lhe fez de mal?” No pior dos casos, Victor Hugo entra em cena com seu “quem poupa o lobo sacrifica as ovelhas”. Ao não agirmos contra uma pessoa ruim somente porque “ela não nos fez mal particularmente”, podemos colocar em risco pessoas boas que são atingidas por ela. 

“Rogéria é uma boa pessoa, pois nunca fala mal de ninguém.”

Nem sempre “quem não fala mal de ninguém” o faz porque é budista em grau máximo; ou seja, não falar mal de ninguém pode não ser boa coisa. Há pessoas que não falam mal de outras porque têm medo de ser confrontadas – assim como há quem não furte somente porque tem medo de ser pego, e não porque aderiu ao princípio de “não tomar o que não é seu” –, porque querem ser gostadas por todos ou porque, simplesmente, são bundonas. O bundão vê alguém ameaçando um pequeno funcionário dentro de uma empresa e não denuncia “porque não quer se envolver”. O bundão vê um colega de trabalho na escola desrespeitando uma criança e fecha os olhos “porque não quer se meter em problemas”. Um mundo cheio desses bundões que não falam mal de ninguém que mereça é um mundo repleto de injustiça. Não é uma virtude você saber que uma pessoa bate o ponto e vai para casa no horário de trabalho e guardar isso consigo. Não é uma virtude você ver que um amigo está enganando outro suposto amigo apenas por interesse (dinheiro, poder, status) e deixar que o enganado pereça sem saber quem causou sua tragédia. Calar sobre uma informação que se tem pode ser um erro grave em vez de uma qualidade. 

“Cláudio era uma pessoa muito bondosa, amiga, genuína.” [Sobre Cláudio, que acabou de morrer.] 

No excelente livro Fim, da Fernanda Torres, um personagem perde o pai. Esse pai era um canalha e foi um péssimo pai. O personagem hesita um pouco, mas prossegue: convida todo mundo para participar do sepultamento do canalha que foi seu pai. Sem floreios, sem mentiras. Quando Ayrton Senna morreu, Nelson Piquet não foi ao seu enterro, para o espanto de muita gente. Espantoso seria, na verdade, se tivesse ido ao enterro de uma pessoa que detestava em vida, e se começasse a fazer um panegírico. Nós, como foi bem dito pelo Contardo Calligaris em entrevista no Roda Viva, temos essa mania estranha de elogiar os mortos, mesmo que não mereçam. (Nós não, porque eu não faço isso.) Tem meu respeito quem sabe avaliar um morto como a pessoa que foi, e não como a pessoa que fica bem que tivesse sido. Vi poucas pessoas morrerem. Todas permanecem na minha avaliação iguaizinhas ao que eram em vida. 

“Paulo dirigia embriagado na rodovia e desmaiou ao volante. Seu carro foi parar na outra pista e todos os caminhões que vinham conseguiram desviar. Não era a vez de Paulo. Se não morreu, é porque não era para ter sido.”

Esse tipo de sentença já mexe comigo porque subentende a presença de Deus, e é um Deus com um modo de operar estranho. A maioria das pessoas que acredita em Deus parece achar que o Criador é trouxa ou astigmático: Ele protegerá quem colocou o adesivo “fé” no próprio carro, Ele dará o céu a quem crê Nele mesmo que essa pessoa não faça o bem, Ele permitirá o paraíso a quem acumula posses mesmo tendo deixado claro que “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino dos céus”, Ele só observa atos e não pensamentos, etc. Mas deixemos Deus um pouco para lá, nas nuvens que se confundem com sua barba. A questão é: se temos hora para morrer, por que seguir normas de segurança? Se eu já tenho um momento “que é para ser”, por que atravessarei na faixa e somente após o semáforo de pedestres ficar verde para mim? Por que evitar comer açúcar? Se nossa hora está destinada, não há o que fazer para alterá-la. Piquemos essa abobrinha e façamos um refogado com ela. 

“Foi Deus que me salvou.” [Dito por Alice, em entrevista a um repórter do jornal local, após ser a única sobrevivente num acidente de ônibus que matou 38 pessoas.] 

Falta amor, altruísmo, compaixão, bom senso nessa fala. Imaginem que sou a mãe de um rapaz que morreu no acidente. Vejo a entrevista com a única moça sobrevivente e ela diz que Deus a escolheu para permanecer viva. Não é preciso estudo de nenhum tratado de lógica da Grécia Antiga para entender que meu filho, segundo essa moça, foi morto por causa de Deus, porque Deus quis. Mesmo que seja verdade – por que essa moça está se gabando disso num momento que é tão triste para mim e mais 37 famílias? Estou passando por algo tão deprimente e ainda tenho que ouvir isso

“Estou gorda como um barril, preciso emagrecer.” [Dito por alguém ao lado de uma pessoa gorda que não começou o assunto.] 

Digamos que somente metade de quem usa essa fala nessa circunstância – estar ao lado de outra pessoa de fato gorda que não começou o assunto – seja por provocação (e há quem diga que não coloco um pouco de otimismo nas ações humanas, que só uso meu parco conhecimento psicanalítico para compreender o mal). Se você for a pessoa atingida pela provocação, tenha pena, franca pena de quem faz isso. É complexo de inferioridade tentando se mascarar com arrogância. Alguém que precise disso para se sentir bem é digno de dó e deve levar uma vidinha interna muito triste. Se você é a pessoa que faz a provocação, bem, já explanei como é a sua vida. Falemos da outra metade, dos que dizem isso sem ser uma provocação ou indireta a quem esteja em volta. Há coisas, principalmente aquelas que concernem à imagem, que não devem ser ditas em qualquer momento ou devem ser ditas de maneira educada. Ninguém é obrigado a querer estar gordo – ou com outras características que se considerem socialmente desvantajosas –, mas é uma absurda falta de educação chegar ao lado de alguém de um jeito xis e dizer, com a boca cheia, que odeia estar com características daquele jeito xis. Uma vez uma mulher de cabelo cacheado disse horrores sobre o próprio cabelo, e disse que ia morrer se não conseguisse alisá-lo “para ficar decente para sair na rua”, ao lado de um homem negro com o cabelo pixaim. Isso não é “estar só falando sobre si” ou “estar apenas expondo as próprias preocupações”, isso é falta de respeito. É como dizer: “meu cabelo é uma droga, imagine o que eu penso do seu”. Não. Se você não diz ao lado de alguém sem pernas “ah, como é bom ter pernas!”, não sugira ao lado de uma pessoa gorda – ou orelhuda, nariguda, alta demais, baixa demais, magra demais, com olheiras, com manchas no rosto, dentes feios, corcunda, idosa, voz nasalada, língua presa – que você considera horrível estar parecido com ela. E lembre-se: reclamar com visível aborrecimento “ai, como estou velho!” ao lado de alguém mais velho que você também é falta de educação, principalmente se você for jovem. Friso isso porque ocorre com uma frequência assustadora. 

“Aquilo que odiamos nos outros é aquilo que odiamos em nós mesmos.”

Qual é o cabimento dessa autoajuda de quem se formou pelo correio? Tudo bem, eu de certa forma me formei pelo correio, mas gosto de ter pensado que criei essa expressão. Primeiro, gostaria de declarar que acho bom que se ataque o ódio, em especial quando ele é contínuo. Não gostar das pessoas é uma coisa – meu livro com os nomes está no terceiro volume e segue –, odiá-las já tem a ver com um tipo de paixão cega e arrebatadora. Quem odeia vai lembrar do objeto de ódio quando acorda, quando lê um livro, quando ouve uma música que o odiado estima, chega a casa à noite e passa tempo demais reclamando para o companheiro sobre o odiado (“porque fez isso, porque é assim, porque planejou assado”), enfim: tem fixação e gasta tempo. O odiado, enquanto isso, está lá sendo feliz ou outra coisa e nem imaginando que ocupa tanto a existência de alguém que só atingirá o clímax quando vê-lo queimando no meio da praça. Discordo da fórmula “o ódio só faz mal a quem o cultiva” porque já vi muitos odiados sofrendo nas mãos daqueles que os odeiam, atuantes como se estivessem numa batalha, mas acho que o pior dano ainda fica na carga de quem sente o ódio. Assim, combater o sentimento de ódio contínuo – o abrupto nós sempre temos e pode até ser salutar para estimular a ação – é bom. Mas afirmar que aquilo que odiamos nos outros é algo que odiamos em nós… A frase não é apenas cafona. É mentirosa. Eu odeio nos outros a inação a respeito do sofrimento animal que todos conhecem (podem desconhecer a dimensão, mas sabem que o sofrimento existe). O que isso tem a ver comigo? Exatamente: nada. Não como animais, evito usar coisas que agridam animais – como se pode considerar que odeio algo em mim quando odeio a esquizofrenia moral nos outros? Odeio nos outros a incapacidade de pensar “e eu na situação dessa pessoa não faria o mesmo?” antes de começar a tecer críticas. Estou odiando algo em mim? Não, porque me pergunto se não faria o mesmo na situação da pessoa que intento criticar. Se eu faria o mesmo, paro. Se eu não faria, critico. Jesus, que está muito participante nesta página hoje, criticava características que ele “não gostava” nos outros. Estaria a atacar o que havia dentro dele? Peguem todos os grandes nomes de homens que revolucionaram o mundo de maneira virtuosa e percebam que eles “não gostavam” ou “odiavam” vários pontos naqueles que combatiam. Alguém ousará dizer que Martin Luther King criticava nos outros aquilo que ele precisava trabalhar nele mesmo? 

“Se o garoto não tivesse tentado furtar a bicicleta, não teriam tatuado uma sentença em sua testa. Se o Charlie Hebdo não tivesse provocado, os muçulmanos radicais não teriam exterminado os jornalistas.” 

Considero muito grave quando converso com alguém que demonstra não saber aplicar o princípio da proporcionalidade – que deveria reger não só o direito penal, mas nossos julgamentos – a casos que ocorrem por aí. Uma esquerda tonta e injusta disse que se justifica o atentado ao Charlie Hebdo porque “os chargistas provocaram os muçulmanos ao desenhar Maomé em posições humilhantes”. Uma direita tonta e injusta – que se aproxima daquela esquerda pela teoria da ferradura – disse que se justifica a tatuagem na testa do garoto ladrão “porque ele não deveria ter tentado furtar uma bicicleta”. Agora imaginem um mundo dominado por juízes doentes que consideram que fazer uma charge deve ter como vingança o assassinato de dez pessoas e tentar furtar uma bicicleta deve remeter ao castigo que Deus aplicou a Caim. Criticou-se tanto o olho por olho e agora temos uma versão para o século XXI que é o “olho por todos os olhos da vila onde mora o autor do primeiro delito”. O mundo não acabará cego, mas exterminado. Quem pensa “bem-feito” em ocasiões como essa nunca se coloca no lugar de quem sofre a retaliação desproporcional. Mas deveria. E se já vai se defendendo com um “eu jamais faria coisas como essas”, talvez deva abrir o leque e imaginar alguém que ame – um dos pais, um dos filhos, um amigo querido – fazendo algo errado e recebendo de “troco” uma consequência excessiva. 

“Eu apanhei na infância e estou aqui, vivo, firme e forte.” [Dito por alguém que apanhou na infância e quer justificar por que hoje acha correto que se possa “dar uns tapinhas de vez em quando” nos filhos.]

É de muito mau gosto – e uma amostra de ignorância – querer transformar casos isolados em teoria. Conheci uma mulher que não amamentou o próprio filho porque ela, quando bebê, não tinha sido amamentada e mesmo assim “tinha se desenvolvido muito bem” (na época vivia doente, não sei em que parte estava o “bom desenvolvimento”; talvez considere bom o fato de não ter ficado uma anã pela falta de aleitamento). Conheci outra mulher (para uma antissocial, conheci bastante gente, não acham?) que permanecia fumando porque sabia de senhoras na família que fumaram até a longa velhice e tinham ficado bem. Poderia elencar muitas outras histórias de conhecidos, mas acredito que já foi possível entender o ponto: sua ilha não é parâmetro para explicar os continentes. E não faz sentido que você queira que os continentes se adaptem à realidade da sua ilha. Sou contrária à palmada e otras cositas aplicadas contra crianças porque o nome claro disso é violência. Se o esposo não pode bater na esposa, que direito ele tem de bater em quem é menos capaz que a esposa – as crianças? Além disso, a palmada é uma demonstração da falta de controle. Você não consegue se impor como autoridade perante tocos de gente e recorre à agressão. O fracasso é seu. Eu por muitos dias precisei ter domínio de quinze crianças, sozinha. Na maior parte do tempo, estava acompanhada por uma colega, mas ainda assim eram seis, sete, oito crianças para cada uma. E tínhamos domínio sem poder recorrer a qualquer palmada que fosse. A situação é idêntica em milhares de outras creches espalhadas pelo país. Hoje os pais têm um ou dois filhos, perdem o controle e já querem recorrer à violência para consertar sua incompetência. De que serve a pedagogia enquanto ainda estiver valendo a surra? O mais importante aqui é que a sua história de vida, ou a história de um bocadinho de fulanos que você conheceu, não serve para explicar o globo. 

“É fácil que ativistas favoráveis ao aborto falem sobre isso quando puderam nascer. Elas não estariam aqui se a mãe delas tivesse abortado.”

Essa fala dá continuidade à anterior. Minha história pessoal não deve ser parâmetro para a história de outras pessoas. É verdade, nasci porque minha mãe não abortou. Mas se eu tiver que ser contra o aborto por ter nascido porque minha mãe não abortou, pessoas que nasceram de mulheres estupradas devem ser favoráveis à continuidade da gestação de outras mulheres que foram estupradas? Se não fosse o estupro que a mãe delas sofreu, elas não estariam aqui hoje para opinar. É a história de cada um que deve basear o ativismo por uma lei? Já dei esse exemplo anteriormente, mas repito: por parte de mãe tenho antepassados escravos, ou seja, pessoas que foram arrancadas da África para trabalhar no Brasil. É fato que minha mãe só pôde conhecer meu pai nos anos 80 porque no passado seus trisavós foram escravizados. Devo, por isso, ser a favor da escravidão vivida no Brasil porque foi por meio dela que meus pais puderam se encontrar e me dar a vida? Como é fácil para tanta gente transformar questões valiosas e grandes em discussões mesquinhas. 

Obviamente não estou imune a criar fórmulas problemáticas e proferir abobrinhas. Mas eu gosto tanto da minha companhia que todos os dias converso comigo mesma sobre diversas coisas, e esses meus erros de percurso estão entre elas. Vocês deveriam conversar consigo mesmos também. Às vezes poderão se assombrar ao ver que estão conhecendo alguém a quem nunca foram apresentados.

***

NOTAS

1. Dissimulação defensiva é aquilo que você precisa fingir ser para viver em sociedade sem ficar muito prejudicado. Ela é aceitável porque parte do pressuposto de que você não é obrigado a morrer por uma causa. É preciso observar o limite, todavia, porque em poucos passos podemos adentrar o perfil da dissimulação pura, que é nojenta, rançosa e vergonhosa. Dissimulados puros dão por aí como chuchu e muito gente não vê – ou não quer ver.

2. Coitadistas cheios de não-me-toques são os mesmos que apoiam ideias como o leitor sensível, cargo criado por algumas editoras para que personagens polêmicos sejam censurados ao ofender os valores e as frescuras de alguém prepotente que esteja do lado de cá do livro. Há um esquerdismo que ousa falar de Orwell e citar 1984 sem perceber que ele próprio, esse esquerdismo ruinoso, quer com todas as forças criar uma situação semelhante ao Grande Irmão.

3. É possível que alguém não goste de animais e seja vegano, assim como é possível que alguém não goste de crianças e mesmo assim seja a favor dos direitos da criança (ou vocês acham que os autoproclamados “não gostadores de crianças” são capazes de ver um miúdo sendo decepado e depois ir ao cinema apreciar um filme de comédia?). Apesar de ser vegana, em nada me agradam as fórmulas sobre “pessoas ruins não gostam de cachorros” ou “gente que não presta não gosta de gatos”. Pessoas ruins e que não prestam maltratam cães e gatos ou permitem que maltratem esses animais. Gostar deles é uma opção, tratá-los bem é uma obrigação. Muitos de vocês, dog lovers, permitem e pagam para que atrocidades sejam feitas com outros animais – inclusive animais mais inteligentes que os cachorros, como os porcos – e vêm posar de bonitos só porque gostam de ver um animal abanando o rabo para vocês? Patéticos.

4. Desconfiei dos elogios que o livro Fim, da Fernanda Torres, estava recebendo, e por isso fiz o download do livro digital. Li na minha primeira semana de férias, em Lisboa, quando descansava no quarto da pensão e minhas roupas secavam no varal, na janela. (Algumas cidades na Itália e em Portugal podem proporcionar essa experiência tão popular). E o livro é ótimo. Estupendo. Dá vontade de reler logo que acaba. Livros bons merecem ser comprados. Comprei o livro.

4.1. Não é que eu não acreditasse no talento da Fernanda Torres. Como atriz, é ótima. Como colunista da Folha, é impressionante. Mas ler que ela tinha escrito “sobre velhos que vivem situações tristes e cômicas no Rio de Janeiro” e ver que o livro tinha na capa uma praia cheia de guarda-sóis… Venho da literatura em que a praia serve como pano de fundo – um pano de fundo vazio – para matar um árabe, não para ambientar a vida de idosos cariocas. Li resumos e pensei “deve ser um livro que ela está escrevendo para a mãe dela”. Pensei que os tais velhos iam aparecer como caducos, jogadores de dominó e falantes compulsivos – características que muitos velhos têm em contos, crônicas e prosas brasileiras. Preconceito meu. Recomendo a leitura com louvor. 

terça-feira, 2 de maio de 2017

Listas extraordinárias, de Shaun Usher


Não me lembro quando foi que comecei a fazer listas porque tenho a impressão de fazer listas desde sempre. Se já possuísse o conhecimento necessário e o cérebro preparado, provavelmente, recém-nascida, já teria elencado os pontos positivos e negativos da vida de bebê. O que sei é que desde a infância tenho feito listas, escritas ou mentais, sobre as coisas, muito disso influenciada pelas delícias que eu lia em livros e revistas quando alguém expressava seus gostos pessoais (ficções prediletas, nomes bonitos, medidas a tomar numa ilha). Eu pensava: “encantador isso, o sujeito ficar namorando a si mesmo criando suas listas”, porque quase todo tipo de autoenamoramento que não desandasse para o narcisismo e o esnobismo calculado me fascinava. Mas não ocorria só com listas personalíssimas. Gosto de listas estatísticas e de “procedimentos para caso este avião caia”. No meio dessa existência que é uma torrente de tópicos meus e dos outros, encontrar o livro Listas extraordinárias foi uma graça para uma madrugada divertida no sofá. 

O livro reúne listas diversas de pessoas que não se conectam sobre assuntos díspares. Há desde O dicionário do beberrão, de Benjamin Franklin, em que são listadas dezenas de expressões que servem para descrever um bêbado – “tomou o grande elixir de Hipócrates”, “arruinou a própria pança” e “está de pilequinho” são algumas delas –, até Motivos para internação no Hospital para insanos da Virgínia Ocidental, no período entre 1864 a 1869 – dentre os motivos, “induzido a entrar para o exército”, “leitura de romance” e “masturbação suprimida”. Li somente as listas que me interessavam porque o livro não é do tipo “para conhecer do cabo ao rabo”, mas do tipo “consulta”. Talvez seja uma boa ideia colocá-lo numa mesa de centro para instigar assuntos com as visitas. Melhor do que livros de arte decorativos sobre os quais ninguém sabe falar com profundidade. 

Selecionei algumas listas boas para exemplificar o tipo de lazer que o livro proporciona. No final da postagem, coloquei também algumas listas minhas. Nunca pude me denominar organizada porque a virtude da organização é vinculada somente a objetos, mas minhas listas são a prova de que sou organizada em conhecimento, pensamentos e fórmulas de conduta – um tipo de ordem que é mais importante do que ter uma mesa clean. Eu poderia determinar que da próxima vez que me perguntarem se sou organizada direi que “sim, organizada em pensamentos”, mas não o farei porque isso seria esperar intensidade de interlocutores possivelmente rasos que gargalham à toa e não compreendem sutilezas. Vida longa às listas, e mais desse tipo de cuidado privado a quem se desencantou de si mesmo numa época em que listas e diários só servem se forem jogados ao público que aplaude. 

***

Na apresentação do Listas extraordinárias, Usher faz uma lista sobre por que é bom fazermos listas. Destaco dois pontos: 

4. Todos nós somos críticos. Classificar as coisas – da melhor à pior, da maior à menor, da mais rápida à mais lenta – pode ser viciante, sem dúvida porque faz com que nos sintamos muito inteligentes.
5. O tempo é precioso. Confiando um monte de informações monótonas a listas facilmente digeríveis, temos mais tempo para nos divertir e fazer listas.

*

Num dos diários de Susan Sontag, editados postumamente por seu único filho David, havia essa lista de Regras para criar um filho. Bonito e útil, seu conjunto de regras só é estranho pelo item 10: 

1. Ser coerente.
2. Não falar sobre ele com os outros (por exemplo, contar coisas engraçadas) na presença dele. (Não deixá-lo acanhado.)
3. Não elogiá-lo por alguma coisa que eu nem consideraria boa.
4. Não repreendê-lo com aspereza por algo que ele foi autorizado a fazer.
5. Rotina diária: comer, lição de casa, banho, dentes, quarto, história, cama.
6. Não deixar que ele me monopolize quando eu estou com outras pessoas.
7. Sempre falar bem do pai dele. (Nada de caretas, suspiros, impaciência, etc.)
8. Não desencorajar as fantasias infantis.
9. Ensinar-lhe que existe um mundo dos adultos que não é da conta dele.
10. Não supor que aquilo que eu não gosto de fazer (banho, lavar o cabelo) ele também não gosta.

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Os pecados de Newton. Lista que Isaac Newton escreveu aos 19 anos. Era dirigida a Deus e confessava seus pecados. Dentre eles, “gulodice”, “desejar a morte e esperar que ela venha para algumas pessoas” e “fazer tortas no domingo à noite”. Impossível não se identificar. 

*

A lista Como a minha vida mudou, de Hilary North, que não morreu no atentado de 11 de setembro porque se atrasou para chegar ao trabalho. Ela lembra de cada colega seu que foi vitimado na tragédia e escreve coisas como:

Não posso mais sorrir para o Paul.
Não posso mais deixar a porta aberta para o Tony. 
Não posso mais fazer confidências para a Lisa.
Não posso mais reclamar do Gary. 

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Os onze mandamentos de Henry Miller. Escritos enquanto escrevia seu primeiro romance publicado, Trópico de câncer:

1. Trabalhe numa coisa de cada vez até concluí-la.
2. Não comece a escrever outros livros, não acrescente mais nada a Primavera negra.
3. Não fique nervoso. Trabalhe com calma, com alegria, com despreocupação no que quer que seja.
4. Trabalhe de acordo com a programação e não de acordo com o humor. Pare na hora estabelecida!
5. Quando não conseguir criar, você pode trabalhar.
6. Consolide um pouco todo dia, em vez de pôr novos fertilizantes.
7. Seja humano! Procure as pessoas, frequente os lugares, beba, se tiver vontade.
8. Não seja um burro de carga! Trabalhe só com prazer.
9. Abandone a programação, quando quiser – mas retome-a no dia seguinte. Concentre. Restrinja. Exclua.
10. Esqueça os livros que você quer escrever. Pense só no livro que você está escrevendo.
11. Escreva primeiro e sempre. Pintura, música, amigos, cinema, tudo isso vem depois.

*

Jack Kerouac, com sua lista Crença e técnica para a prosa moderna, parece ter sido lido por muitos escritores dos nossos tempos:

28. Componha loucamente, sem disciplina, puramente, saindo de dentro, quanto mais louco melhor.
29. Você é um gênio o tempo todo.

*

Estranhas ideias de Lovecraft. 222 ideias que H. P. Lovecraft compilou para uso posterior em histórias de ficção. Coisas como:

73. Ratos se multiplicam e exterminam primeiro uma cidade e depois a humanidade inteira. Aumentados em tamanho e inteligência.
97. Medo cego de uma floresta onde cursos d'água serpenteiam entre raízes tortas e onde ocorreram sacrifícios terríveis num altar enterrado – Fosforescência de árvores mortas. Chão borbulha.

*

Um decálogo liberal, por Bertrand Russell: 

Talvez se possa resumir a essência da posição liberal num novo decálogo, que não pretende substituir o velho, mas apenas suplementá-lo. Os Dez Mandamentos que, como professor, eu gostaria de divulgar, poderiam ser redigidos nos seguintes termos: 

1. Não tenha certeza absoluta de nada.
2. Não pense que vale a pena esconder provas, pois elas certamente virão à luz.
3. Nunca tente desencorajar um pensamento, pois você com certeza vai conseguir.
4. Quando encontrar oposição, ainda que seja de seu cônjuge ou de seus filhos, esforce-se para vencê-la com argumentos, e não com autoridade, pois a vitória que depende de autoridade é irreal e ilusória.
5. Não respeite a autoridade dos outros, pois sempre vai encontrar autoridades contrárias.
6. Não use o poder para calar opiniões que considera perniciosas, pois, se fizer isso, as opiniões vão calar você.
7. Não tenha medo de ser excêntrico em suas opiniões, pois toda opinião que hoje é aceita já foi excêntrica no passado.
8. Tenha mais prazer com uma dissidência inteligente do que com uma concordância passiva, pois, se você valoriza a inteligência como deve, a primeira implica uma concordância mais profunda que a segunda.
9. Seja escrupulosamente verdadeiro, ainda que a verdade seja inconveniente, pois ela é mais inconveniente quando você tenta escondê-la.
10. Não tenha inveja da felicidade de quem vive num paraíso dos tolos, pois só um tolo achará que isso é felicidade.

*

Sugestões para tomar ônibus integrados. Essa lista, que não transcreverei por completo, me fez entender por que a ala delirante do movimento negro não costuma citar Martin Luther King em seus textos raivosos: porque ele não era um ativista movido pelo ódio. Luther King é um dos poucos cristãos que fazem jus ao título. Dentre seus preceitos está o de não revidar atos violentos. Negros que comemoram quando brancos são fuzilados por radicais islâmicos na França ou ficam do lado de criminosos como o Champinha (vale recordar aquele texto abominável da Marilene Felinto na Caros Amigos, em 2004) realmente não têm como idolatrar uma liderança que recomendava: “Se o xingarem, não responda. Se o empurrarem, não empurre. Se lhe derem um safanão, não revide, mas sempre demonstre amor e boa vontade.”. Claro está que mesmo com toda essa bondade Martin Luther King não perdeu dinamismo. Sua atuação pacífica não era sinônimo de inércia. Foi essa lista que me levou a um interesse maior por ele e me fez comprar sua autobiografia, publicada pela Zahar, que lerei quando voltar de férias, em junho. Segue a explicação de seu contexto e parte da lista: 

O curso da história mudou em 1º de dezembro de 1955, quando Rosa Parks se recusou a ceder seu lugar no ônibus a um passageiro branco e foi presa por isso. No ano seguinte, até os tribunais federais considerarem inconstitucional a segregação racial, ocorreu um boicote ao transporte público, liderado por Martin Luther King. Em 19 de dezembro de 1956, às vésperas de uma vitória histórica para os opositores da segregação, King elaborou uma lista de normas para aqueles que logo voltariam a tomar ônibus. 

1. Nem todos os brancos se opõem aos ônibus integrados. Aceite a boa vontade da parte de muitos.
2. Agora todos podem usar o ônibus inteiro. Sente-se no lugar vago.
3. Quando entrar no ônibus, peça ajuda ao céu e honre seu compromisso com a não violência absoluta em palavras e atos.
4. Demonstre em seus atos a calma dignidade de nossa gente em Montgomery.
5. Observe, em todos os aspectos, as regras usuais de cortesia e bom comportamento.
6. Lembre-se de que essa é uma vitória não só para os negros, mas para Montgomery e o Sul. Não se gabe! Não se vanglorie!
7. Fique quieto, porém amistoso; orgulhoso, mas não arrogante; contente, mas não ruidoso.
8. Tenha amor suficiente para absorver o mal e discernimento bastante para transformar um inimigo num amigo.

***

Agora, poucas das minhas inúmeras listas. A primeira poderia se chamar Melhores citações que estão em minha agenda 2017. São citações que fazem muito sentido para mim e tento sempre me lembrar delas para operar* coisas boas no meu cotidiano: 
[*operar é uma palavra de que gosto muito; seu problema é que foi sequestrada para uso abusivo por evangélicos e agora toda vez que a uso lembro de algum pastor] 

Pois cada qual considera claras ideias que estão no mesmo grau de confusão que as suas. 
Proust

Não se faz boa literatura com boas intenções nem com bons sentimentos.
André Gide

Cuidado com a bondade dos maus. 
Esopo

O perverso pode mudar de aparência, mas não de hábitos. 
Esopo

Quanto mais se estende o nosso conhecimento dos bons livros, mais se reduz o círculo dos homens cuja companhia nos é agradável. 
Feuerbach

Lembra-te: nada é estável nas coisas humanas. Evita, pois, tanto a euforia na prosperidade quanto a depressão na adversidade. 
Isócrates

Comunismo é uma religião igualzinha às outras. Pra quem acredita, não precisa explicação. Pra quem não acredita, não adianta explicação. 
Millôr Fernandes

A coisa principal na vida não é o conhecimento, mas o uso que dele se faz. 
Do Talmude

Não chegamos a conhecer as pessoas quando elas vêm a nossa casa. Devemos ir à casa delas para ver como são. 
Goethe

Os homens são geralmente tão avaros do seu dinheiro como pródigos dos seus conselhos. 
Marquês de Maricá

Quem vive contente com nada possui todas as coisas. 
Boileau

Os covardes duram mais, mas vivem menos. 
Sofocleto

Quando um chato diz “eu vou embora”, que presença de espírito!
Millôr Fernandes

*

Lista Aos meus amigos, com amor. Coisas que eu gostaria que meus amigos soubessem e entendessem: 

1. Sou contra qualquer tipo de corporativismo, seja entre profissionais ou entre amigos. Se você errou, não defenderei seu erro. Se você me conta uma história do seu ponto de vista, eu vou perguntar se não podemos olhar do ponto de vista da outra pessoa. Não espere concordância.
2. Não sei consolar ninguém. Se me trouxer um problema, direi militarmente “erga-se, ande e vamos pensando em alguma coisa para resolver isso logo”. Não vou ficar às voltas com você e seu problema. Sou sargenta com os meus problemas, serei com os seus.
3. Está triste ou depressivo? A menos que seja porque perdeu uma perna, uma pessoa querida ou está sofrendo perseguição de agiotas, não sou boa companhia. Peça-me dinheiro, mas não me peça para ouvir lamúrias.
4. Sou sua amiga. Sua. Não tenho obrigação de gostar de quem está com você de forma acessória. Não me tornei amiga da sua esposa ou do seu marido, não me tornei amiga dos seus filhos ou dos seus outros amigos. Se sou sua amiga, é porque me interessei por você. Não me obrigue a gostar de outras pessoas ligadas a você. Vou respeitá-las, é claro. Mas não tenho que gostar delas. Tanto não sou amiga dessas pessoas que, se você morrer, eu não terei mais contato com elas.
5. Só porque às vezes eu sumo não quer dizer que não pense em você. Eu penso. Muito.
6. Se você se tornar uma pessoa idiota, nós romperemos nosso relacionamento como os casais rompem o deles.
7. Você não precisa ser debochado só porque eu sou debochada. Cada um tem uma personalidade e quem foge da sua sem ser para o lado da virtude geralmente não fica bem. Se se ofender com algum deboche meu, fale. Fale, não fique mudo, nem beiçudo, nem me dando indiretas. 

*

Modismos de escrita que mancham quem escreve

1. Abuso de palavras do momento. Ex: empoderamento, resiliência.
2. Recursos especiais pedantes. Ex: usar parênteses para fazer uma palavra se transformar em duas, como em “partidarismo: uma opção (i)moral?” ou “o misógino e seus (des)afetos”. Muito comum em trabalhos acadêmicos, o que explica por que a universidade está ao lado da autoajuda barata ao derrubar árvores para transformá-las em lixo paginado. 
3. Eufemismos fajutos. Ex: desconstrução.
4. Encheção de linguiça. Não ser objetivo para parecer erudito. Subjetividade não é nem de longe sinônimo de inteligência, pensamento galante ou coisa que o valha. Uma pessoa ignorante subjetiva é algumas vezes pior que uma ignorante prática no palavreado.
5. Recorrência periódica a comparações esdrúxulas desproporcionais. Ex: “Bolsonaro é Hitler”, “Cunha é Hitler”, “Alexandre de Moraes é Hitler”, “o golpe [sic] lembra a Alemanha nazista”, enfim, “todo mundo que eu não gosto é Hitler ou se assemelha ao nazismo”.

*

Quando tinha dúvidas se pedia a mão de sua prima Emma, Darwin escreveu uma lista com prós e contras sobre o casamento (essa lista está no livro de Usher). Eu, que estou chegando naquela fase, inclusive biológica, em que se deve decidir se filhos são bons ou não, também fiz minhas listas de prós e contras. Os contras vencem de maneira evidente, mas não vou fingir que não existam prós. 

Motivos para ter filhos

1. Porque sou uma pessoa com clara cartilha educacional. Se infelizmente casais sem planos educacionais têm filhos, por que eu que tenho um método e princípios não deveria tê-los?
2. Porque sou intransigente em relação ao respeito, coisa que os pais não exigem mais: uma criança deve cumprimentar os outros, uma criança não deve interromper adultos falando, uma criança não deve ser o centro das atenções, uma criança deve ter rotina e saber que na maior parte do tempo seus progenitores não estarão abertos a suas negociações. E em público uma criança deve entender o que seus pais querem somente pelo olhar. 
3. Porque crianças são divertidas. E crianças educadas são muito bonitinhas. 
4. Porque é maravilhoso ter uma autoridade saudável sobre alguém que você ama.
5. Porque é maravilhoso brincar com crianças de igual para igual, e eu sei fazer isso sem parecer uma adulta constrangida porque está tentando fazer uma girafinha falar com voz fanha. Aliás, brincar pra valer não me causa nenhum constrangimento.
6. Porque famílias bonitas me encantam. Famílias em que os membros são amigos, comem juntos, cozinham juntos, dão suporte uns aos outros, dividem as tarefas domésticas, celebram. Não estou falando de “o grupo da família” no Whatsapp. Estou falando de comunhão presencial.
7. Porque terei quem me acompanhe ao médico quando eu usar bengala. 

Motivos para não ter filhos

1. Porque gosto muito de mim mesma para ter que dividir minha atenção com outras pessoas.
2. Porque se me meto a fazer, quero fazer bem feito. Isso significa que eu não aceitaria ser uma mãe mais ou menos. Isso significa que a maternidade tomaria muito do meu tempo e da minha energia.
3. Porque eu gosto de silêncio. Gosto de tomar café (descafeinado) na janela e esperar aviões passarem, e eu sempre apreciei poder ouvir um avião passando ao longe e perceber que tudo o mais silencia. Gosto tanto do silêncio que gosto de estar em casa e ficar calada por horas: gosto de não ouvir nada, nem ninguém, inclusive minha própria voz.
4. Porque eu gosto de ir dormir muito tarde e acordar muito tarde. Porque gosto do ar das duas horas da madrugada. Ao mesmo tempo, sempre fiz questão de, por saúde e conforto, dormir minhas 8h diárias.
5. Porque não posso devolver meus filhos caso a experiência seja mais penosa do que gratificante.
6. Porque gosto de ficar por três horas, sem interrupção, lendo um livro.
7. Porque gosto muito de ler. Porque não quero ser uma pessoa do “não tenho tempo para”. 
8. Porque eu evito trazer quaisquer pessoas novas para meu ambiente familiar e também evito entrar em novos ambientes. Porque não preciso e não me farão bem novos relacionamentos íntimos forçados. Porque não quero ter que me envolver com os pais dos colegas dos meus filhos só porque nossos filhos são amigos. Porque me corroem obrigações sociais. 
9. Porque sou ansiosa, e mesmo com as coisas mais banais. Consegui trabalhar minha ansiedade e hoje estou calma. Mas para ela voltar basta um estalo, e um filho é muito mais que um estalo, é quase uma promessa de bomba.
10. Porque com meu senso de “a família é muito importante”, a possibilidade de que meus filhos não se tornassem amigos perenes seria muito ruim para meu coração (é por esse motivo que se eu tivesse filhos minha primeira opção seria dois meninos, a segunda opção seria duas meninas e só por último viriam um menino e uma menina: amizade perene entre irmãos de sexos diferentes são muito raras, tragicamente). 
11. Porque gosto de ser livre.

*

Lista de nomes bonitos. Se existisse uma profissão chamada "aconselhadora de nomes", eu gostaria de fazer bicos nela. Acho uma dádiva meus pais terem me dado um nome bonito, pois deve ser horrível não gostar do próprio nome. Só penso que não precisavam ter me dado um nome do meio, já que meu primeiro nome é forte o suficiente e meu sobrenome é incomum. Gosto do meu nome do meio, Raquel, mas o considero desnecessário. Minha lista pessoal de nomes bonitos é formada desde a minha infância (cogitei, em certa época pueril, que um filho meu poderia se chamar Barbaro): 

Barbara, Úrsula, Rosa, Suzana, Ângela, Ângelo, Walter, Wagner, Fausto, Frederico, Francis, Bóris, Glauco, Rubens.