segunda-feira, 27 de agosto de 2018

As aberrações dos zoológicos e dos cães de raça

O filme Freud: além da alma (1962), com roteiro baseado num texto de Sartre, começa dizendo que três foram os grandes que minaram a vaidade humana: Copérnico, ao tirar a Terra do centro do Universo, Darwin, ao tirar o homem do centro da natureza para onde todo o resto convergiria – e destronar a absurda ideia de que esse mesmo homem é o ponto mais elevado da evolução, como se ela tivesse batalhado para alcançá-lo –, e Freud, ao arrancar do homem o falso livre arbítrio, a escolha consciente de ações e palavras. Já citei esse início de filme em outra postagem porque gosto muito dele. E como na outra postagem vou ligá-lo à questão animal. 

A preocupação com o sofrimento animal, que tem seu ponto alto no veganismo, não é um indivíduo de renome, mas é um juízo ético que também surgiu para quebrar as pernas desse ser humano tão habitual que se crê a medida de todas as coisas e o rei ao qual todas as coisas devem servir. Eu poderia falar sobre carne hoje – ensinar aos argumentadores de internet os reais motivos para não comê-la, que desculpas não usar em sua defesa rasa (“os leões”, “a natureza”, “sempre foi assim”, “o gosto é bom”) –, mas não vou. Quero falar brevemente sobre a insensibilidade do monarca bípede que vê animais como bizarrices enjauláveis ou decoração de apartamento. Quero falar sobre as aberrações dos zoológicos e dos cachorros de raça. 

O padrão do zoológico funciona da seguinte forma básica: animais escolhidos por sua variedade, “graça” e diferença são retirados de seu meio natural e colocados em um meio artificial montado por interessados (muitas vezes com incentivo do Governo) em saciar a curiosidade de pessoas geralmente prestes a falecer num mar de tédio ou aflitas por proporcionar “afazeres a céu aberto” para crianças. Não satisfeitas em assistir a alguns ótimos programas sobre animais da BBC apresentados pelo simpático David Attenborough, essas pessoas saem de suas casas para ver um pinguim descontextualizado em plena São Paulo – e achar isso muito bonito, fofo, “educativo para a consciência ecológica dos pequenos”. Quase parece agradável em cena (quase, pois em cena já há indícios óbvios de crueldade), mas os bastidores – é ali que os fatos estão, é ali que devemos olhar – são sujos. Primeiro, o exercício Atticus Finch de colocar os sapatos do próximo para sentir o que ele sente – nesse caso, imaginar-se nas patas do outro. Se animais são capazes de sofrer como você e eu – suas pupilas crescem diante do medo, porcos gritam e se desesperam ao verem outro porco com a garganta cortada, galinhas cometem canibalismo sob estresse –, não há por que, nesse ponto, não nos colocarmos em seu lugar. Assim, duvido muito que você se sentiria bem se o tirassem de um ambiente ao qual você está adaptado para colocá-lo numa simulação a fim de entreter bobos alegres. 

Os instrutores de zoológicos – algumas vezes biólogos – defenderão que o animal está seguro, está bem tratado, tem uma chance de paz e sobrevivência muito maior do que se estivesse na selva ou no Pantanal. Mas essa preocupação não é sincera – vejam todos os outros animais da mesma espécie que ficaram na selva e no Pantanal seguindo a severa lei da natureza enquanto um rinoceronte pontual e uma onça pontual foram escolhidos para o catálogo vivo do zoológico da cidade. Ademais, os animais pontuais não foram tirados de seu habitat com fins de “salvá-los”, mas meramente para proporcionar deleite rápido em quem não pondera nada sobre a indústria do entretenimento. 

Os instrutores também dirão – como vi pessoalmente uma dizer quando há muitos anos fui ao zoológico de Pomerode com as crianças da creche onde trabalhei (época em que zoológicos para mim eram uma mistura de beleza com mal-estar, mas eu ainda não estava disposta a teorizar algo a respeito) – que muitos dos animais dos zoológicos “foram resgatados porque não tinham condições de se manter na natureza”. Isso, da parte da administração do local, ajuda a explicar aos mais perguntadores a razão de os animais terem sido arrancados de seus ambientes de origem. 

Animais desse tipo deveriam ser enviados para “santuários”, e não para servir numa vitrine. Mas olhemos melhor para a matemática e a simbologia na escolha dos zoológicos, já que tantos “resgatam animais coitados”. O zoológico funciona como o guia de moda da mulher prática para a montagem do guarda-roupa perfeito: algumas camisetas/blusas, poucas calças, um vestido de verão, um vestido preto, um par de sapatos, um par de tênis, roupa de ginástica, etc. Assim como nesse modelo você não verá dez vestidos pretos num guarda-roupa ou nenhum vestido preto em outro, os zoológicos não mantêm dez leões resgatados ou nenhum – porque “zoológico que se preze” tem pelo menos um leão, um rinoceronte, uma girafa, um grupo de macacos, um grupo de pinguins, vários pássaros, um urso e por aí vai, sem ausência ou excesso de animal representativo do fantástico. O zoológico que não tem um leão é raríssimo: e se de fato não tiver, esse é um problema momentâneo que a administração está tentando resolver às pressas. Nesse cálculo, quem acredita que a natureza está numa sintonia tão magnífica com os zoológicos que consegue prover, em número ótimo, a quantidade necessária de “animais para resgate em más condições que não conseguiriam sobreviver sozinhos em seus habitats”? Com boa intenção ou não – às vezes é se pensando como bem-intencionado que alguém dá um trabalho insalubre num porão a um boliviano desesperado –, zoológicos são aberrações. Visitá-los é incentivar a crueldade e a barbárie. Gosta de animais? Veja-os na TV. Mas queria ver ao vivo? Visite um santuário, e leve dinheiro para ajudar os cuidadores do lugar a dar o que os animais resgatados precisam. 

A Dinamarca é um dos países “danem-se o que pensam, somos assim e não vamos mudar porque esse é o jeito dinamarquês de fazer as coisas” que matam animais de zoológicos quando eles estão em número maior do que o esperado para atender ao estúpido e fútil propósito de entreter pessoas. “Não precisamos mais dessa girafa, vamos matá-la e oferecer sua carne aos outros animais carnívoros daqui” (ver caso Marius). É o mesmo país que acha requintado ter mantas de pele de animais em casa. Ou seja: aquele hábito que muitos de nós temos de nos horrorizar com a medievalidade de algumas nações pobres para tratar certas questões é em grande parte um julgamento rápido esnobe e discriminatório sem avaliar bem a realidade. No meu bairro pobre em Blumenau é muito comum que desdentados, maconheiros e pançudos passeiem nos finais de semana com seus pássaros engaiolados (apanhados no mato com alçapão), visão medonha que me dá vontade de ter uma bomba, um flit paralisante qualquer. Aí vou a Paris, uma das principais capitais do mundo, reino da afetação elegante, e vejo o quê? A banalização da tortura nauseante revertida num montinho de foie gras em cada vitrine de loja culinária. É abominável, e cada classe tem seu meio de explorar animais para atender a extravagâncias humanas. 


Cães de raça são muito bonitos. Em matéria de design canino – traços e características de personalidade –, acho que meu cão de raça preferido é o Dachshund, conhecido como “cachorro salsicha”. Mas esse gostar é um capricho, e o que é certo muitas vezes vai na direção oposta aos nossos caprichos. Assim, defendo que o salsichinha deixe de existir, bem como todos os outros cachorros de raça pura. 

A classe média que desfila seus cães de raça pelas ruas como uma extensão do bom gosto – “uso Adidas, sou atlético, empresário e aqui está meu Labrador”, “sou enigmática, séria, altíssima, magríssima, dedicada ao trabalho e aqui estou, impenetrável com meu Dobermann” – fecha os olhos para o que ocorre com os animais, permitindo que os “shoppings de filhotes” possam existir fingindo fofura. Abrir os olhos, nesse caso, pode atrapalhar a adequada harmonização do cachorro com o sofá, do cachorro com a risada histérica da perua estabanada, do cachorro com o estilo de vida e de casa que a família resolveu adotar para posar bem numa fotografia estilo “interior da Suíça”. Sou muito mais contida do que todos supõem. Meu outro eu, franco até a medula e um tipo psiquiátrico, está sempre ali, sussurrando grosso por detrás da porta onde foi trancado: “estrague o jantar desses frívolos, mostre o vídeo real de um porco sendo espancado até a morte e depois diga calmamente, entre aqueles olhos arregalados e aquelas bochechas de constrangimento, que você sempre poderá jantar vendo os bastidores da produção daquilo que está comendo”, “pare essa alienada com seus três Yorkshire para mostrar a fábrica de cachorrinhos onde a mãe deles possivelmente está confinada parindo um cifrão atrás do outro”. Evito barbarizar, mas bem que vocês mereciam. Porque aqui não estão fantasias, estão realidades que não serão mudadas com ignorância autoimposta. O problema não deixa de existir só porque vocês fingem que não existe. Se algumas pessoas ainda insistem ingenuamente na compra de animais de raça porque desconhecem a origem desses miseráveis, há outras que sabem vagamente da história, mas preferem não saber demais porque o conhecimento cria responsabilidades e as responsabilidades com o sofrimento animal podem estorvar os fins decorativos e acessórios dos galantes cães de raça. 

Os cães vêm dos lobos; podemos chamá-los rapidamente de lobos domesticados pelo homem. Isso, por si, já é lamentável, porque a domesticação transformou animais independentes selvagens em caseiros carentes. Há cãezinhos que deixados no mato morrerão sem saber como proceder com caça e abrigo em poucos dias – graças à domesticação e ao “racismo”, que os tornaram tão subordinados ao homem. Vejo cães que abanam o rabo para donos horríveis e penso que a domesticação de animais é um dos grandes erros da humanidade. Se tenho cães e gatos hoje é apenas porque mantê-los sob cuidado é um tipo de mal necessário. Na minha imagem de mundo ideal não existiriam animais domesticados, e cães e gatos selvagens saberiam muito bem como cuidar de suas necessidades sem depender do homem. Ocorre que já não basta termos uma superpopulação de cães e gatos nas ruas, favelas e gaiolas agropecuárias – há quem pague para manter funcionando uma fábrica que coloca ainda mais animais domesticados na conta do puppy boom. Isso gera dor para todos. Cães de raça não nascem após gentil intercurso sexual entre dois cães puros adultos que toparam um com o outro em uma festa de solteiros cheios de bossa. Esses animais são muitas vezes forçados a acasalar de maneira nada natural. Mas isso não é o pior. Para manter as características que dão valor à raça pura, cães acasalam com parentes próximos, mães acasalam com filhos e assim por diante. Se ainda não basta para assustar quem acabou de ver o Poodle no sofá ocupando o lugar de uma almofada (que finesse!), há cadelas “matrizes” parideiras que passam a curta vida em cativeiro apenas com a finalidade de trazer o maior lucro possível ao dono da fábrica de filhotes – até que a cadela, esgotada e prestes a morrer muito antes do tempo de vida médio de sua raça, não sirva mais e seja descartada. Era hora de um “meu corpo, minhas regras” chegar a esses locais que escravizam cadelas (exceção de arbítrio para o ato da castração, que é outro mal necessário). Voltemos ao exercício de empatia. Imagine você, colega, ser forçada a parir um bebê atrás do outro porque existe gente que deseja comprar bebês lindos em vez de adotar os bebês não tão padronizados que sobejam nos orfanatos. Você não é mais uma pessoa, você é uma máquina que atende a interesses fúteis, e como máquina não há importância com o seu bem-estar desde que possa ter o mínimo de saúde para continuar parindo bebês. 

Se tudo isso já está errado, não é preciso ir longe na internet ou no contato com atuantes no resgate de animais que sofrem maus tratos para saber de casos de fábricas de filhotes que estão batalhando pela medalha de ouro da crueldade: não só dominam e escravizam os animais, mas permitem que as cadelas parideiras fiquem doentes, desnutridas, com os pelos de todo o corpo embaraçados pelas próprias fezes, temerosas de qualquer humano que se aproxime. Os filhotinhos delas? Vão bem peludinhos, fofinhos, engraçadinhos e desajeitadinhos para as gaiolas de vidro das lojas para encantar otários, decoradores e tapados. 

A etapa final dessa bola de neve de problemas, que não deveria harmonizar com a existência de ninguém, é que animais de raça são muito mais propensos a doenças. As cruzas querem respeitar características dos animais que são consideradas bonitas aos olhos, não à saúde e ao sucesso físico. Para que essas características sejam acentuadas, a cruza entre parentes próximos é o caminho mais rápido para a seleção artificial eficaz, e também para problemas genéticos que todos sabem que costumam aparecer quando parentes acasalam. É por isso que o Pastor Alemão tem problemas de coluna e nas patas traseiras (não me lembro de conhecer nenhum cão dessa raça que chegou à velhice sem esse tipo de moléstia, e alguns passam a arrastar a bacia no chão), o Chihuahua é forte candidato a problemas na cabeça devido à hidrocefalia, o Lulu da Pomerânia é predisposto ao deslocamento da patela e à cegueira, o focinho demasiadamente curto do Pug causa problemas respiratórios... e aqui vai um mórbido “etc”, pois a lista é longa. Os problemas específicos de todas as raças por cruzamento forçado estão em fartura na internet, problemas que apareceram por causa do egoísmo humano e da vontade de criação bizarra. A seleção natural não permitiria que muitos desses cachorros se perpetuassem com tantos defeitos, mas justamente vários de seus defeitos é que são estimulados nas fábricas de cachorros puros. 

Não há nada de belo na manutenção dos zoológicos e na origem dos cães de raça. Apoiar essas práticas cruéis é como manchar uma trajetória de vida com apologia do horror. Não foi à toa ou só para chocar que o escritor judeu Isaac Bashevis Singer disse há décadas uma sentença que não está nada perto de perder o sentido numa sociedade que trata animais como coisas inferiores que merecem ser subjugadas: “Para os animais, todos os seres humanos são nazistas”. É cômodo julgar outras pessoas, no passado, que estavam cometendo erros absurdos. Mas quem são os nazistas de hoje? 

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NOTAS 

1. Os cães de raça não têm culpa dos donos que têm. Quem adquire um cão de raça porque ignora sua origem deve ser orientado para que não cometa novamente a falta de comprar um animal proveniente de uma indústria cruel e mercenária. Quem sabe a procedência cruel dos animais que compra e opta por continuar comprando “porque os vira-latas não são tão bonitos, não caem tão bem com a minha casa e o meu estilo” – esse sujeito merece ser execrado. 

2. É claro que se você já tem um cão de raça não deve se desfazer dele. Tristemente há quem se desfaça dos animais de raça quando eles ficam velhos ou doentes, pois aí perdem sua função de decorar o lar e entreter as crianças.