quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

O pecado mais cruel e nada divertido - "Inveja", de Joseph Epstein

Costuma-se dizer que o único pecado que ninguém confessa é a inveja. Muita gente nega sentir, o que é mentira. Muita gente finge não estar sentindo, o que talvez seja pior do que entregar a fraqueza de forma franca. E eu não me lembro de ter conhecido qualquer pessoa que admitisse sentir inveja do próximo. Inveja dos ricos e famosos, inveja da blogueira que brinca de Amélie Poulain morando na Bélgica, inveja do estranho que acabou de ganhar na loteria, inveja da modelo holandesa que faz ensaios na Harper's – isso é fácil aceitar, trabalhar e até externar. Mas a inveja daquela pessoa que está logo ali e parece se amar mais do que eu me amo, que parece ter um casamento melhor que o meu, filhos mais educados, vida sexual ativa, que recebeu uma promoção, que recebe o dobro do meu salário, que é mais bonita do que eu, que faz coisas que eu nunca consegui fazer por medo, que tem uma personalidade incrível, que é segura de si e não me dá muita importância – essa inveja ninguém admite. E precisaríamos admitir? Não, porque não existe nenhuma norma social que determine que devamos ser livros escancarados. Já negar a inveja em vez de consertá-la na medida do possível – sendo um tanto biológica e com sentido evolucionário, torna-se mais dificultoso extirpá-la de vez – parece coisa de quem erra duas vezes: erra ao sentir inveja por expor o próprio fracasso para si mesmo e erra ao teatralizar sentimentos. A falsidade é bela e necessária no palco. Na vida cotidiana costuma trazer um tipo de ranço que se denuncia em gargalhadas forçadas, olhares furtivos, falas cheias de meandros competitivos, ironia fora de hora e gestos feios. O invejoso é rico em atos falhos facilmente reconhecíveis por qualquer um que tenha aplicado a psicanálise ao exame dos outros. Que propósito existe nesse tipo de conduta analítica dos subtextos e dos símbolos que nossos pares deitam sobre nós sem perceber? Poupamos tempo, energia e impedimos intimidade com quem não agrega nada. Os únicos que reconhecem invejosos e gostam de tê-los sob louvor são os que vivem à procura de causar inveja. Os dois sujeitos tristes se merecem e dependem um do outro para esse projeto de vida vazia. 

A Oxford University Press estava para lançar uma coleção sobre os sete pecados capitais, sendo cada pecado abordado por um autor diferente. Ao escritor Joseph Epstein restaram ira, preguiça, luxúria e inveja para escolher. Ele escolheu a inveja, que é um dos pecados mais delicados, e, segundo ele, o único que não tem lado engraçado. Descobri esse livrinho por meio de uma coluna do João Pereira Coutinho na Folha – se suas opiniões fossem tão sérias quanto suas recomendações de leitura, seria um colunista perfeito; a coluna de 14/02, por exemplo, me parece apenas mais uma de suas vontades de barbarizar – e logo o comprei. Encanta-me entender todos os pecados e a inveja é, como é para todo mundo, o pecado que mais me causa mal-estar. Obviamente não gosto de sentir inveja. Ao mesmo tempo, não sinto inveja pelos objetos tradicionalmente fonte de inveja para outras pessoas. Mas nos campos em que sinto, sinto. E de fato não há nada de divertido nisso.

Falando sobre a inveja no terreno das ideias mais altas, Epstein cita Kierkegaard, Kant, Nietzsche e, é claro, Schopenhauer. Diz o último que “sentindo-se infelizes, os homens não conseguem suportar a visão de alguém que julguem estar feliz” e “o ódio sempre acompanha a inveja”. Nos cadernos bobos de colegas ginasiais sempre se escreviam frases de tom moralista ao estilo “para meninas”. Uma das mais comuns ressaltava que o verdadeiro amigo não é aquele que está com você para celebrar seus momentos felizes, mas aquele que está lá para enxugar suas lágrimas. Pura abobrinha. A prova maior de uma grande amizade ocorre quando seu amigo vê que você está bem, está melhor que ele, que está alcançando coisas que ele mesmo não alcançou – e está feliz por isso. Não é fácil admirar com honestidade alguém que está ao nosso lado obtendo privilégios que nós não obtemos. As celebridades que são inundadas todos os dias com juras de amor de “eu te admiro e quero ser como você” devem sempre pensar que estão a salvo somente porque estão longe. Se estivessem perto de seus fãs, continuariam causando inveja, mas misturada com ódio. A vizinhança não é ruim apenas porque invade sua privacidade, mas porque torna você “um dos nossos, mas que não é família”, ou seja, alvo do que o Oxford English Dictionary define como “o sentimento de mortificação e má vontade provocado pela contemplação de vantagens superiores possuídas por outrem”. Se seu próximo for invejoso e você estiver melhor que ele, você será tácita e amargamente cozido em uma panelinha de rancor. Se seu próximo for esnobe, idem. E se seu próximo for esnobe e você estiver pior que ele, você será considerado um coitado, um reles. Competições sociais podem atingir níveis muito doentios, e isso não vale só para quem toma medicação, vai ao psiquiatra e é um espalhafato de problemas. As águas paradas que aparecem podem ser profundas. Exceções sobre essa rivalidade são abertas para nossos pais, cônjuges e filhos: quando eles progridem, sentimos que progredimos junto, e a explicação mais coerente para esse fato deve estar associada à biologia. Isso é tão notório que qualquer um que demonstre invejar o próprio filho porque ele conseguiu ir para uma universidade melhor que a sua será visto com estranhamento.

Quando confrontados com um sério revés ou uma desgraça irreversível na vida, sentimo-nos inclinados a fazer uma pergunta óbvia: Por que eu? Mas para a pessoa invejosa, a pergunta, ao ver alguém que teve mais sorte, é: Por que não eu? Por que esta mulher deve ser mais bonita do que eu? Por que este homem é mais rico e mais poderoso? Por que estas pessoas têm talentos e dons naturais que me faltam? Lord Chesterfield declarou que 'as pessoas odeiam aqueles que as fazem sentir a própria inferioridade'. Sem dúvida, isto nos faz perguntar: 'Por que fui deixado de fora? Por que não eu?'

Após esse trecho, Epstein sugere que algumas profissões são mais propensas à inveja do que outras e que o ramo da literatura deve ser o pior. Ele próprio, no pensamento seguinte, diz que isso pode ser um julgamento errado de sua parte, já que é apenas o círculo literário e acadêmico que ele conhece bem. Já trabalhei em lugares variados, conheço pessoas que trabalharam em lugares variados e posso dizer com alguma segurança: mesmo entre as faxineiras do seu prédio pode haver um grau elevado de inveja contaminando relações. Há inveja nos lugares mais estúpidos e entre as pessoas mais estudadas: nenhuma classe ou profissão está imune a ela. Há inveja entre freiras e entre membros de ONGs. Entre pessoas que fazem trabalho voluntário. Entre feministas ativistas. Entre amigos de infância. Há inveja entre amigas que saem juntas para comprar toalhas – “olha a Lúcia esbanjando dinheiro só para ter toalhas de maior qualidade que as minhas; também, com esse emprego fácil de salário imerecido...” –, entre viajantes, entre bebedores de vinho, e no grande roteiro de restaurantes de São Paulo há até competição para ver quem vai aos melhores lugares, resultando num grupo de almas sujas e verruguentas tomadas pelo esnobismo, pela inveja ou, horror dos horrores, por ambos. Atribuem a Sócrates uma bela fala proferida após ver inúmeros itens num mercado: “tantas são as coisas de que não preciso para ser feliz!” Podemos trocar a palavra “coisas” por “companhias” quando frequentamos um desses ambientes.

Na distinção que Epstein faz entre ciúme e inveja no capítulo primeiro, uma frase sua basta: “sente-se ciúme do que se tem e inveja do que as outras pessoas têm”.

A inveja possui uma espécie de amor à justiça, mas de forma macabra. Uma de suas maiores vontades é a de nivelar, mas não pelo alto para que todos sejamos felizes, e sim para que todos sejamos medíocres. Quem se atreve a fugir da felicidade medíocre é visado, e não é à toa que Epstein compara certos anseios comunistas e socialistas a uma vontade invejosa. Nesse ponto, discordo um pouco dele. Sei que muitos esquerdistas só são esquerdistas por inveja – tivemos várias provas disso quando esquerdistas pobres, ao alcançar o poder, passaram a tratar seus iguais como súditos, realizando o que Bakunin previa para a até agora fracassada ditadura do proletariado – e que no fundo eles gostariam de ter o poder e a pompa que seus alvos têm – lembremo-nos das vidas absurdamente luxuosas de Mao, Fidel, Stálin e da dinastia Kim –, mas reduzir toda vontade de justiça a motivação invejosa é perverso. Se o dono de uma indústria enriquece rapidamente enquanto seus funcionários trabalham por salários de miséria, reivindicar melhores condições de pagamento não é “invejoso”. É apenas justo. Claro, nem sempre é fácil distinguir a justiça da pura inveja. Quando uma mulher feia pleiteia “a quebra dos padrões de beleza” para que seus traços possam ser considerados bonitos, às vezes tenho minhas dúvidas se estou diante de uma advogada de uma causa interessante ou de uma invejosa que anseia nivelar todos os modelos para que ela não fique por baixo. Essa hesitação de minha parte surge principalmente quando aquele que requer pede coisas que o beneficiem, como é o caso da vertente narcisista do feminismo. E é por isso que considero o veganismo como uma das causas mais nobres: quando se pleiteia algo para o outro, como poderá a inveja sequestrar essa preocupação? A relação entre veganos uns com os outros é outra história muito diferente. No que concerne a veganos e animais, a inveja some. Para fechar esse ponto sobre sistemas sociais falsamente igualitários, um trechinho muito bom do capítulo oitavo:

E é claro que nenhuma sociedade foi mais cheia de inveja do que a falecida (e nem um pouco lamentada) União Soviética, onde dedurar seus vizinhos devido às suas vantagens fez da inveja um meio de vida e uma forma da ascensão.

No primeiro parágrafo escrevi que o invejoso dá sinais. Não cabe a mim palestrar sobre esses sinais: observem, estudem e aprendam. Confesso que me acho bastante “leitora das mensagens ocultas alheias”, mas só falo a sério sobre isso (a sério = coisas não exatamente inofensivas) com pessoas realmente íntimas. Essas pessoas íntimas não são leitoras de mensagens ocultas. Graça das graças, costumo não gostar de outros arrogados leitores dessas psicopatologias da vida cotidiana (um texto bom de Freud, apesar de considerá-lo exagerado porque ninguém mais pregará os olhos à noite ao tentar se debruçar sobre a questão: “por que José escolheu o número 34 quando pedi que escolhesse aleatoriamente qualquer número até 100?”), pois sempre acho que eles estão lendo errado. Ou entregando seu próprio modus operandi em vez de arreganhar o do outro. Por exemplo, sempre desconfiei das meninas/moças/mulheres/senhoras que chegaram para mim apontando suas análises minuciosas sobre uma outra “que dá em cima dos meninos/moços/homens/senhores”. Essa acusação não costuma vir com um tom encantado como se uma senhorinha de cabelo branco preso num coque tivesse acabado de sair de um campo florido com uma cestinha de palha, olhasse para a prostituta simpática que é sua vizinha e dissesse, com as bochechas rosadas pelo sol e pelo rubor: “dando em cima de todos os homens da vila, hein, Dafne?” A delação costuma ser venenosa. É uma leitura, e é uma leitura que costuma ser venenosa. O que penso? Geralmente penso que quem está acusando é que “dá em cima” – seja rindo mais alto para homens ou se abaixando para pegar um lápis, não sei, mulheres têm formas bem bizarras de seduzir às vezes – e está quase se incriminando como o bom caso da raposa e das uvas. Nessas leituras erradas, uma pessoa má se entrega (a que se finge de dama mas que é a vagabunda para a qual aponta o narizinho) ou põe em maus lençóis uma pessoa boa (quem não conhece uma mulher que era agradável com todos e foi chamada de vagabunda porque o “todos” incluía “homens que estão sendo vigiados por intrometidas que não sossegam o facho"?). Ressalto que isso não é regra: às vezes a analista é mesmo uma dama e está certa em sua leitura sobre as outras, e aí a única questão que fica é se a animação das outras é da conta dela e por que diabos ela se importa tanto. Assim, minhas leituras são um lazer muito pessoal: passá-las por completo pode levar ao equívoco (cadê o juiz para escolher qual é a leitura correta?) e à exposição desnecessária. Nenhum detetive fica revelando seus métodos. Mas Epstein, que é centenas de vezes mais cuidadoso e razoável, tenta mostrar um tipo de ajuda para o reconhecimento do invejoso:

Um manual para identificar os invejosos seria de grande utilidade. O invejoso muitas vezes lança mão da ironia, a arte de dizer uma coisa, mas querendo dizer outra. Cuidado, também, com o desdém excessivo, mesmo quando usado por si próprio, porque, nas palavras de Paul Valéry, 'a um exame mais cuidadoso descobrimos que o desdém inclui uma pitada de inveja'. A tendência da maioria das pessoas é desdenhar do que não consegue fazer ou ter. O invejoso também tende a elogiar excessivamente. […] Moral da história: observe os olhos de quem se curva mais.

Conselhos simples e práticos para viver num terreno tão pantanoso. Quem não conhece gente que se mascara sob desdém e ironia? Aqui, dou minha opinião mais uma vez. Ironia, aquela ironia que vivo criticando (aquela que digo ser tão comum na fala de professores de história, que no meio de História Contemporânea III devem ter recebido muitas aulas subliminares de ironia para terem saído da faculdade com aquela imensa expressão de pato sabido), não deve se confundir com graça. O debochado, o “palhaço da turma”, não tira sarro da sua cara para te fazer mal. Ele quer ser engraçado, seja falando que suas orelhas são grandes (você achar isso engraçado ou não é outro assunto) ou que você tem um bordão pegajoso. Sua intenção é: ser engraçado. É o Chandler Bing da vida real. Já o irônico não quer ser engraçado, tanto é que ele ri sozinho ou muitas vezes ri acompanhado de sorrisos amarelos constrangidos. O irônico quer provocar, ofender, menosprezar, diminuir. Muitas vezes ele precisa disso para fingir que é superior aos outros (se se achasse mesmo superior, não precisaria fazer esse papel patético de mascarar complexo de inferioridade com ironias que desequilibram o emocional alheio), portanto é digno de pena. A ironia que você deve aceitar como recurso justo é a ironia de um inimigo, porque faz parte do inimigo querer te provocar e diminuir. Se um pretenso amigo ou colega faz isso, algo está muito errado. Afaste-se e limpe os pés antes de entrar em casa.

Que outros conselhos Epstein compila para que reconheçamos um invejoso de meter medo? Não há quase nada mais. Por a inveja ter um grande “talento para o disfarce”, na expressão de Leslie Farber, poucos estudos são feitos sobre o tema. Um desses poucos mostrou que muitas pessoas estão dispostas a ganhar menos dinheiro desde que ganhem mais do que seus colegas: para elas, é preferível ganhar 85 mil por ano se ninguém mais ganhasse acima de 75 mil a ganhar 100 mil num contexto onde todos os outros ganham 125 mil. Se acha que isso parece absurdo, pense bem. É comum que se avalie a própria vida tomando como parâmetro a vida dos outros, e é por isso que muitas vezes o faxineiro com o salário mais alto da equipe pode estar mais feliz que o procurador com o salário mais baixo da classe. Epstein cita uma máxima de Josh Billings: “a melhor situação na vida é não ser tão rico a ponto de ser invejado, nem tão pobre a ponto de ser execrado”.

No capítulo sexto, Malditos jovens, fala-se sobre a inveja da juventude. Vocês devem saber do que se trata, mas vou declarar que considero esta uma das invejas mais injustas e sem sentido. Por quê? Porque o quarentão, cinquentão, sessentão que inveja a juventude de seu colega ou subordinado já teve a sua vez como jovem. E precisa pensar que a tendência é que esse jovem à sua frente terá a oportunidade de ficar velho como ele mesmo ficou. É um ciclo, e não faz sentido invejá-lo: você já esteve no lugar dele, ele um dia estará no seu (não precisa esfregar as mãos maleficamente e sussurrar entredentes “hehe, um dia ele estará no meu lugar”, não é de revanche que estou falando). Quanto ao jovem que com 20 anos já conseguiu o que você só alcançou aos 40, candura. Cada um tem um estilo de vida para conseguir as coisas e essas comparações não vão levar ninguém a lugar algum. Se levarem, será com uma dose muito ruim de hormônios prejudiciais perambulando pelo organismo. Epstein conta uma história engraçada (com a qual me identifico):

Minha inveja só ganhou particularidade quando decidi que queria ser escritor. Isto me pôs imediatamente na situação de invejar outros escritores da minha geração que, da maneira como o mundo media essas coisas, haviam avançado mais rápido do que eu. Com vinte e poucos anos, lembro-me de ter lido, nas notas sobre os colaboradores da Poetry Magazine, que uma mulher com três poemas naquela edição havia nascido dois anos depois de mim, o que foi suficiente para me estragar o dia – e eu nem tinha intenção de escrever poesia. Saber que pessoas da minha idade ou ainda mais jovens já haviam escrito livros, alguns até bons, era mais do que perturbador. Eu não queria exatamente que morressem, mas, diante da falta de cortesia por não terem esperado que minhas realizações fossem reconhecidas primeiro, eu queria que, de algum modo, fossem impedidas de escrever. A moral desta historieta, acredito, é que é difícil ser ambicioso sem também sentir inveja.

Essa confissão me lembra algo que aconteceu comigo há muitos anos (leia-se há mais de sete anos). Um amigo e eu pensamos em escrever romances para participar de um concurso literário. Éramos totalmente pretensiosos para achar que de primeira e em dois meses poderíamos escrever algo que prestasse e merecesse prêmios, mas juventude é isso: você acha que sabe tudo e que é um Rimbaud escondido. Começamos a escrever. Quando eu não estava nem com uma trama engatada, esse amigo me envia várias páginas da sua história. Fiquei preocupada. “Eu é que escrevo, eu é que leio Sartre desde os 15, e ele me passa na frente?” Desgostosa e com cara de grumpy cat, fui ler o que ele tinha escrito. Li. Terminei e pensei: “Graças a deus é ruim”. Fiquei feliz por ver que meu amigo não me deixaria para trás num ramo que eu acreditava ser o meu. Para que ele não se sinta humilhado sozinho nessa confissão, o que eu escrevi depois também era bastante ruim. Na época achei que era uma nova Pirandello transportando o conflito entre personagens e autor do palco para a prosa, mas hoje sei que aquilo era apenas o fruto de uma presunção. Ademais, no estilo dei uma de Clarice Lispector e escrevi o que vinha na telha. Não tinha como ser bom, como prova o resultado lá-lá-lá-escrevo-o-que-penso-e-não-retoco do trabalho dela, cujos livros não consigo ler por mais de vinte páginas.

Inveja, de Joseph Epstein, trata ainda do feminismo, do asco aos judeus, das diferentes coisas que homens e mulheres invejam e do famoso Schadenfreude, que é o sentimento de prazer que se sente com o fracasso ou a derrota de outras pessoas. Com 137 páginas de texto num formato pequeno, é um bom livrinho para ler numa tarde calma. Já encomendei, aliás, os livros equivalentes aos outros seis pecados. Finalizo minha seleção com um trecho bonito que está na última página. Gosto muito quando Epstein cita a palavra “auto-análise”, porque isso nos remete à responsabilidade que deveríamos ter conosco e se perdeu num tempo de psicólogos, psiquiatras e médicos para qualquer “desvio” absolutamente humano. Deve ser culpa da era da terceirização, onde até a resolução de emoções simples e trabalháveis são tarefa para outros fazerem por nós. Eis o trecho:

Seja lá o que for, a inveja é, acima de tudo, um grande desperdício de energia mental. Embora não se possa provar que a inveja faça ou não parte da natureza humana, o que se pode provar, acredito, é que quando desencadeada, ela tende a degradar a pessoa de quem se apossa. Sempre que a inveja entra em cena, o julgamento torna-se mais grosseiro e vulgar. Como quer que a mente funcione, a inveja, sabemos, é um de seus excessos, e como tal é preciso identificá-la e combatê-la pelo único meio à nossa disposição: a honestidade consigo mesmo, a auto-análise e um julgamento equilibrado.
 
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Inveja (Coleção sete pecados capitais) – Joseph Epstein, Editora ARX. A coleção está disponível na loja virtual da Saraiva, exceto o exemplar dedicado à preguiça, que só pode ser encontrado na Estante Virtual.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Explicando este blog

Olá, leitores. Este é um blog novo, mas é quase uma continuação do antigo Barbara Maidel Page. Encerrei-o por dois motivos: primeiro, porque queria um ar refrescado, cores novas, criação de tags diferentes. Alguns leitores me acompanham há muitos anos – declaradamente ou às escondidas – e sabem que já tive pelo menos uns três blogs, que acabei fechando para visitação. Cada mudança de blog é uma vontade de renovação, apesar de eu continuar a mesma schopenhaueriana de sempre (coisa que pronuncio como um autoelogio). Segundo, porque fui invadida por um tipo de visualizador spam. Todos os dias, algum servidor nos EUA visita, automaticamente, 30 ou 40 vezes cada postagem do meu blog. Fui de vinte/trinta visualizações diárias para centenas. Parece coisa de quem fatura com visualizações, mas isso não tem nada a ver comigo, pois meu blog atingia um público restrito e nunca o liberei para gerar renda com anúncios. Se alguém cadastrou minha página num site que gera visualizações automáticas achando que me fazia um favor ou um trote, não atingiu seu objetivo. Vejo de onde vêm as visualizações e obviamente sei que não são reais. (Aos que me leem de forma espiã: não se preocupem, não tenho a capacidade de rastreá-los; podem continuar me stalkeando e depois fingindo que não sabem o que se passa na minha vida e na sala das minhas opiniões.)

O Barbara Maidel Page continuará aberto pelo simples motivo de eu gostar muito de alguns textos que estão lá. De outros textos não gosto tanto e sempre penso em fazer consertos pontuais, mas acabo concluindo que um blog não é como um livro que precisa de edições atualizadas. O que escrevi era pertinente com o que eu pensava na época em que publiquei. Se penso de forma diferente sobre certo assunto, devo escrever um novo texto sobre ele em vez de mexer num texto antigo que manterá sua data da época. Se eu corrigir um texto de março de 2015, por exemplo, e a data se mantiver a mesma, é quase como se eu estivesse me fraudando. Ou excluo a postagem, ou deixo como está.

Dentre alguns dos textos de que gosto do blog antigo estão:

Editoras – Breves comentários sobre editoras confiáveis e editoras mercenárias que estão no mercado. Infelizmente há pessoas inteligentes que ainda não sabem avaliar o valor de compra de uma obra nova de acordo com a editora que a publica. Foi uma honra ver que a Denise Bottmann, citada na postagem, recomendou o texto em seu blog Não Gosto de Plágio.

O que Deus tem a ver com isso – Sobre Deus, evolução (das espécies) e veganismo. O que eu mais gosto desse texto é da luz que recebi para uma explicação (que enquanto eu não encontrar em nenhum artigo ou obra anterior considerarei original) sobre a incompatibilidade entre a crença em Deus e a aceitação da evolução por um motivo especial: quem tenta fundir as duas ideias – geralmente quem tem medo de não ser amparado por forças místicas mas ao mesmo tempo não quer passar por antiquado que nega a ciência – precisa admitir que um pai que viraria apenas pó gerou um filho que viraria um ser com alma graças ao dedo de Deus atuando sobre essa “evolução guiada”. Ainda quero escrever melhor sobre esse assunto. Nunca é cansativo ler, falar, escrever, propagar as belas histórias da evolução. Só de olhar aquela imagem sobre caracteres homólogos já sinto ímpeto de participar de cruzadas darwinistas com Richard Dawkins.

A idade do serrote – Murilo Mendes – Excertos de um dos meus livros de literatura favoritos. Livro lindo, sentimental, uma valsa. Sobre meu comentário que antecede as passagens copiadas do livro de Murilo Mendes, mantenho minha opinião de acordo com a máxima romana: “Livros ou filhos”. Se isso já fazia sentido num passado muito remoto, hoje em dia é quase lei: com pais que trabalham fora e gostam de ler, colocar crianças dentro de casa é matar o amor pela leitura praticado do jeito certo. Quem tem filhos lê pouco, ou muito menos do que gostaria. Quando lê muito, é porque está deixando os filhos de lado. Muitos dos grandes homens que a humanidade já criou tiveram filhos e conseguiram seguir com suas vidas intelectuais – porque suas mulheres, irmãs e babás cuidavam diariamente de suas crianças. Isso ajuda a explicar por que homens intelectuais não se limitavam na busca do conhecimento ao colocar muitos rebentos no mundo e mulheres intelectuais optaram por não ter filhos – ou ter um filho só. As poucas intelectuais que arriscaram ter filhos e os preteriram em benefício de si mesmas correram o risco de ver suas crianças crescendo e publicando livros e entrevistas escandalosas: “mamãe nunca foi capaz de dar afeto sincero para nós”, “essa senhora que se convencionou que eu chamasse de 'mãe' sempre me empurrou para a casa de avós e babás”, “ela se fechava no escritório por horas com suas leituras enquanto aprendíamos a cozinhar batatas sozinhos”.

Montando uma biblioteca particular – Uma casa deve ser um lar. E um lar que se preze possui uma biblioteca. Nessa postagem, derramo minhas lamúrias sobre casas horrendas (porque sem vida, sem personalidade, montadas com avareza ou com vistas a atender algum modismo fajuto) e dou conselhos sobre como montar uma biblioteca pessoal. É uma das postagens mais lidas.

O paradoxo da igualdade de gênero – Homens e mulheres são diferentes. E quem diz que isso se deve somente à repressão cultural deve voltar aos bancos escolares para as aulas de ciências. Se hormônios moldam nosso corpo, nossos pelos, a suavidade ou rudeza de nossos traços, não há por que negar que moldam também nossa personalidade. Mesmo assim, a biologia não é uma prisão, dizem os cientistas, que assumem que somos biologia + cultura. Já os culturalistas dizem que tudo que somos vem da cultura… É uma triste ignorância que encontra eco tanto nos centros acadêmicos tomados pelo esquerdismo quanto entre opinadores de redes sociais que se guiam pelo que dizem os astros.

Movimentos que criam monstros – Um apanhado de absurdos que compilei das falas reais de justiceiros sociais, também conhecidos como SJW (social justice warrior). Parece piada. Mas não é. Quando calhou de ser piada – algum imenso gozador criou um perfil falso para proliferar opiniões non sense na internet –, mesmo assim se tornou sério pela quantidade de curtidas e incentivos que ganhou. Foi o que aconteceu quando uma usuária falsa publicou no maior grupo sobre veganismo do Facebook (que é um grupo medonho: causa-me asco imaginar que muita gente nova vai parar lá e vai achar que aquilo é veganismo) que era desrespeitoso com os negros, “que inventaram a feijoada”, que veganos criassem uma feijoada alternativa sem todos os itens que a receita negra ordenava. Nesse caso, os veganos deveriam dar outro nome à sua pretensa feijoada para não ofender os negros. Piada forçada? Sem dúvida. Manifestações de apoio? Mais de cem. Por mexer com gente histérica e autoritária, também se tornou uma das postagens mais lidas e compartilhadas do blog.

Trabalhando em uma biblioteca – Em 2015, saí da biblioteca do IFSC para assumir um cargo em São Paulo. E saí com dor, porque ajudei a construir a biblioteca que deixei para trás e bibliotecas costumam ser lugares ótimos para se trabalhar quando não se é rebaixado por assuntos humanos desagradáveis (ninguém deixa uma biblioteca porque “estava incomodado com o ar petulante dos livros” ou porque “o quinto livro da segunda prateleira critica meu estilo de vida”). Com a experiência, pude reunir uma porção de fatos bizarros que vivi atrás do balcão de atendimento. Compilei-os nessa postagem. 

A biblioteca esquecida de Hitler – Timothy W. Ryback
– Resenha sobre o referido livro. Mais elogio do que critico. Critico, isso sim, uma interpretação que Ryback faz da leitura de Hitler sobre Schopenhauer. Eu havia dito que passaria a anotar nos livros a data em que os li para que “não me perdesse em minha história como leitora”. Acabei não fazendo isso porque criei um diário de leituras: agora anoto quanto comecei a ler tal livro e quando o terminei. Parece serelepe no momento, mas daqui a cinco ou dez anos, quando eu estiver revivendo o que fiz da minha vida, agradecerei a mim mesma por ter feito essas anotações. Gostar de nós mesmos é fazer isso de ficar brincando com as próprias coisinhas e fazendo rabiscos que causarão ternura no futuro. Eu me arrependo muito de não ter guardado meus cadernos de desenho da infância.

Gordos e gordofobia – Uma crítica aos gordos que se exibem de maneira afetada para nos convencer de que são felizes (é claro que é possível ser gordo e feliz – quando se propagandeia isso em demasia é que começa a desconfiança sobre uma possível felicidade forjada), aos obesos-exceção que acham que seus casos muito particulares de exames de sangue “normais” provam que é possível ser obeso e saudável, e também aos gordofóbicos, que costumam ser ressentidos e incomodados com quem não tem sua preocupação em se adaptar ao que a sociedade determinou como “aceitável” (gordofóbicos muitas vezes pensam: “como eu, magro, sou infeliz e esse outsider de 140 quilos ousa ser feliz?”). Felicidade incomoda. Principalmente quando alguém se atreve a ser feliz fora dos padrões.

Quem convidar para a festa e quem expulsar dela – Eu penso que a minha vida particular é uma festa. Eu me divirto, eu choro, eu bebo, eu danço, eu fico batendo os pés na beira da piscina. Como essa festa é particular e sobre mim, tenho todo o direito de escolher quem convidar para participar dela. Não escolhemos nossos parentes, nossos colegas de faculdade, nossos professores, nossos colegas de trabalho, mas escolhemos quem pode ou não participar da festa de nossas vidas, quem frequentará nossa casa, quem chamaremos espontaneamente e com muito gosto para tomar um Cosmopolitan na madrugada. Lanço os tipos que devem ser vetados de qualquer intimidade para que não estraguem nossa festa: o exibido, o invejoso, o umbigo tagarela, o provocador, o das indiretas, o que se recusa a aprender e o fútil. Parece fácil barrar essas figuras, mas não é, principalmente porque elas não se veem como são. Às vezes elas tentam se vender para nós como uma coisa, mas são o oposto (por isso fazem questão de fazer declarações bonitas sobre si…). A tarefa é árdua na hora de preparar a lista de convidados, mas necessária: se deixar entrar na festa “o das indiretas”, por exemplo, ele vai atormentar a sua vida e estragar o sabor da Piña Colada. Barre-o enquanto é tempo, porque depois que o sujeito se acha íntimo você só conseguirá arrancá-lo do palco chamando os seguranças, criando uma cena grosseira ou puxando uma arma. E se não sobrar quase ninguém, lembre-se que Schopenhauer dizia que para cada homem de valor há uns cem idiotas.

Da utilidade de rabiscar livros – Texto recente em que defendo que livros bons sejam usados como material de consumo em vez de itens decorativos. O genuíno amor ao conhecimento – e o amor à prática de resgatar o conhecimento quando necessário – pede que se rabisque um livro em nome de sua compreensão e uso posterior. Quem lê doze bons livros por ano chegará ao mês de dezembro sem lembrar muito bem de várias passagens do livro lido em janeiro: seu rabisco o salvará da insânia. Para quem não tem amor ao conhecimento ou acha que um livro na sala é como uma taça na estante, esses conselhos são vãos: um livro que só serve para passar o tempo de alguém poderia muito bem ser substituído por um jogo de cartas ou um seriado vazio.

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Quanto a este blog, permanecerá com a regra do outro: com a seção de comentários fechada. Vivemos num tempo em que qualquer pacóvio pensa que sua opinião é relevante para o mundo. Não é. Quem não gosta do que lê aqui, que vá ler outra coisa ou monte seu próprio blog. Não tenho interesse em palestras discordantes. Sei que erro em algumas colocações, sei que há dias em que escrevo como se estivesse no meio da fúria de um redemoinho, mas prefiro me corrigir sozinha ou com os meus amigos (aqueles que foram convidados para a festa da minha vida). Aos que pensam que fechando a seção de comentários me livro somente das críticas, enganam-se: livro-me também dos elogios que criam obrigações. Disse Freud: “Contra os ataques um homem pode se defender; contra os elogios ele não pode fazer nada.” Alguém que elogia seu texto na internet muitas vezes quer que você agradeça o elogio, que comece uma amizade ou que você leia as coisas dele também como forma de retribuição por você ter recebido um elogio dele. Estou fora desse tipo de pendência e tenho horror a gente carente. Carência só é bonita em cachorro. Também acho ruim ter que me policiar quinhentas vezes para não ofender os leitores fiéis que se mostram em caixas de comentários e fazem cobranças. Os puxa-sacos cobram a dívida de seus encantos (muitas vezes nem precisam cobrar porque a maioria das pessoas cai na cilada de ficar hipnotizada por alguém que finja as adorar.) Um conselho para a vida: você não é obrigado a comentar sobre tudo que lê. Pode apenas ler sem forçar ninguém a estar a par da sua existência cheia de “grandes opiniões”.

Aos que me leem com as melhores intenções e com o coração suave, aquele abraço e um 2017 muito belo e virtuoso.


*Imagem de capa: casinhas cinzas em Edimburgo - Escócia
Aqui embaixo: um das centenas de gnomos espalhados pela cidade polonesa de Wroclav (Breslávia, em português)