domingo, 29 de abril de 2018

Lula, pai de aluguel de uma esquerda desesperada

Em 1989 eu teria votado em Lula. Quem viu os debates entre Collor e Lula no segundo turno (no primeiro turno, todas as revistas de humor bem registraram que Collor não comparecera aos debates) só podia votar em Collor se não simpatizasse pessoalmente com Lula – má ideia, para a vida séria, colocar questões pessoais na frente de questões coletivas – ou se estivesse encantado com a oratória vilã de Collor. Parece-me quase obrigatório que entre um e outro qualquer pessoa de caráter optasse por Lula, pelo menos por um motivo que é razoável na mão de quem não debanda para a anarquia do voto nulo: escolher o menos pior. Em 1989 Lula é que fazia sentido, gostasse Cláudia Raia ou não – já que votou em Collor. Na mesma época a atriz também se apaixonou por Alexandre Frota e defendeu em artigo à VEJA seu direito de fumar em paz (e de votar em Collor em paz), informação que ajuda a explicar uma má fase, pela qual todos passamos em alguns momentos – portanto, não julguemos. 

Após o Mensalão, do qual Lula saiu acobertado e impune, não havia mais como rasgar a garganta para cantar com emoção pelas ruas “brilha uma estrela!...”. Quem ficou com Lula não era capaz de autocrítica e usava a lógica do taxista: ou é isso ou é aquilo. Assim, entre adotar na prática um partido que diferia dos outros só em teoria ou buscar uma necessária reciclagem, figuras como Chico Buarque e Tássia Camargo preferiram manter o discurso e o apoio, para vergonha de qualquer cidadão um bocadinho justo. Diz-se, nas centrais reducionistas conspiratórias e delirantes da esquerda (é chato repetir isso toda vez, mas a direita também tem as suas), que quem abomina Lula nestes tempos “não gostou de ver o pobre andando de avião”, simplismo que sai das centrais e se espalha. Criam esse espantalho tosco e fingem que não sabem: muitos dos que hoje repudiam Lula são aqueles que votaram nele em todos os pleitos até 2002. Ora, se sentissem ojeriza pela ascensão dos pobres não teriam, em período tão considerável, votado justamente em quem tinha como bandeira principal a ascensão dos pobres. Não faz sentido, mas quem tem ideologia cega e partidarismo não precisa de sentido, apenas de fé. Política partidária, homeopatia e religião dependem de crença, não de fatos. 

Tirando guerras, terrorismo, violência e doenças, hoje há poucas coisas que são piores do que tentar conversar sobre política com um lulista. Talvez: 

a) Entrar numa loja na qual se pretende passar um tempo e perceber que tocam Coldplay (tanto faz se as deprê-semialegres ou as deprê-suicídio-no-rio-à-tardinha); 

b) Ler clichês em comentários de vídeos humorísticos no YouTube, como “puta crítica social” e “humor ácido”; 

c) Sentar num bar no qual se pretende beber por um tempo e perceber que começam a montar um sarau para daqui a pouco; 

d) Participar do espaço público com quem não compreende o espaço público: chupam os dentes, gritam palavrões, não usam fones, fedem sem uma boa explicação; 

e) Estar na fila do pão quando a feminista à sua frente começa a lecionar sobre patriarcado para a atendente, que é tão mais educada que só pensa (e não fala) “preciso trabalhar, querida”; 

f) Aguentar o monólogo daquele que nunca vai ao teatro, mas um dia foi e acha que já pode dizer “as pessoas não vão ao teatro nesse país”; 

g) Aguentar o monólogo daquele que nunca lê um livro, mas um dia leu e acha que já pode dizer “o problema do Brasil é que o povo não lê”; 

h) Aguentar o monólogo daquele que nunca ouve música clássica, mas um dia ouviu e acha que já pode dizer “meu favorito é Brahms” (apenas porque sabe que As quatro estações de Vivaldi é coisa de quem lê autoajuda, elege Monet como um dos maiores pintores e compra bolas decorativas da China na Camicado); 

i) Pessoas que compram o CD “Beatles para bebês”; 

j) Pessoas que aplaudem com força exibida um índio tocando flauta na rua; 

k) Pessoas que usam com regularidade os termos “vagabundo” e “vagabunda”; 

l) Pessoas. 

O lulista das classes média e alta, aliás, era para ser uma figura em extinção. Quase começava a ser antes de Lula ser investigado por utilizar a coisa pública para interesses privados, mas reapareceu como marca do desespero de uma esquerda que não tinha quem colocar no lugar para mover o voto das massas. 

Enquanto Chico Buarque e Tássia Camargo ficaram com Lula, muitos nomes migraram para partidos menores porque não queriam participar do programa prostituído do PT e sabiam que aquela corrupção toda (na qual, na época, acreditavam) poderia manchá-los por associação “diga-me em que partido andas e te direi quem és”. Lula fora um bom líder para trazer o Brasil à esquerda, mas precisava ser superado – migrar do PT para outros partidos era manifestar uma diferença. Sua premente condenação mudou essa forma de pensar (não vá longe: as linhas do tempo de Facebook, Twitter, etc. de seus colegas ditos à esquerda estão lá como uma praça de provas do discurso que se modela e degringola) não porque PSOL (declaro aqui que já votei no Plínio de Arruda Sampaio e não me arrependo, pois era o que havia) e outros partidinhos tenham, em seus corações, mudado de opinião sobre Lula, mas porque sem Lula a esquerda não tem candidato que receba mais do que sofridos 3% de intenções de voto. A esquerda que no passado recente saiu do entorno de Lula porque não queria se associar a quem sabia ter se corrompido (e se corrompido demais) voltou como o filho pródigo para receber o banquete do pai: viu que sem o pai não é grande coisa nos números. 

Isso explica por que Manuela d'Ávila e o piromaníaco Guilherme Boulos resolveram ser a sombra de Lula: aquele corpinho cansado é o parente prestes a falecer que tem uma herança a deixar – neste caso, votos. Associando-se ao Lula que ainda lidera pesquisas na quentura do populacho, Manuela e Boulos tentam uma transferência direta de eleitores. Para não destruir reputações que cresceram querendo se individualizar perante o PT, os dois aceitam criar um mito injustiçado. Não se pode apoiar Lula dizendo que ele é mesmo culpado e que já era hora de pagar por ao menos uma das suas “contravenções” no mundo político, portanto o certo é primeiro dizer que Lula é inocente (vítima das arbitrariedades de três instâncias, preso por suas ideias, o Mandela brasileiro, etc.) para depois apoiá-lo sem dever justificativas à ética. A esquerda é ruim com Lula, mas sem ele se vê pior. Seu desespero só deve gerar pena. 

***

NOTAS 

1. Sempre que passo roupas em casa coloco vídeos compridos no YouTube para ver na TV, geralmente entrevistas no Roda Viva. E me encantei quando vi a primeira entrevista de Paulo Maluf, de 1995. Não só porque Maluf é uma das três pessoas do globo que ficam bem com gel no cabelo, mas porque aquele senhor, prefeito de São Paulo à época, defendia pautas inovadoras como proibição de fumo nos restaurantes (foi chamado de “radical” e sugerido como “ocupado com trivialidades” pelos jornalistas da bancada) – mesmo tendo em casa uma esposa-chaminé –, uso obrigatório do cinto de segurança (novamente criticado pelos jornalistas convidados por esse “exagero paternalista”) e política de controle de natalidade, que é uma das questões que considero mais urgentes para diminuir a pobreza. Pensei, entre a passada de uma manga de camisa e a borrifada cheirosa na perna de uma calça, “possivelmente eu teria votado nesse homem”. Política é isso: um momento. Assim como não havia opção sensata que não fosse Lula no segundo turno de 1989, não há opinião sensata que hoje defenda Lula. Ou Maluf. 

2. Houve um momento em que sair do PT era um quase dever de decência. Não foi nesse momento que Marta Suplicy saiu do PT. E, quando saiu, não foi com decência. 

3. Ausentei-me por longo tempo porque viajava nas férias. Já voltei. Um abraço aos que leem com boas intenções.