sábado, 11 de maio de 2019

Compilado de parasitologia humana, parte I



A terra está coberta de pessoas que não merecem que se lhes fale.”
– Voltaire em carta ao Cardeal de Bernis

Já que vivo em sociedade – mesmo que às vezes sob protestos –, por que não aproveito os infortúnios da convivência para recreação, “inspiração artística” e autocrítica? Recreação: diante de obrigações sociais, enxergar os outros como atores deslumbrantes ou patéticos é uma distração que induz à reflexão filosófica ou à comicidade, bons entretenimentos para fazer algo útil do tempo que seria perdido se decidisse moscar na plateia ou enquanto enceno junto. Inspiração artística: dadas as minhas ambições literárias – frutíferas ou falhas – que são sobre pessoas e não sobre itens inanimados, preciso buscar fontes reais de composição de personagens não só para o físico (cabelos longos, olheiras saltadas, cara acabada, ancas largas, nariz adunco, corpos desbundados e despeitados, pescoços lipídicos), mas especialmente para a personalidade. As gentes são tão diferentes e tão iguais que mesmo as ficções parecendo repetir histórias sempre rendem algo novo, ficando geralmente para azedos e ressentidos teorizar com ar das montanhas que “nada se cria, tudo se copia”. Autocrítica: ver o lixo alheio serve de aprendizado para que eu reavalie o meu lixo, recicle coisas e faça do meu universo íntimo algo mais harmonioso. 

É por isso que me ocupei tanto, desde a infância, a categorizar os tipos. Tenho asco; acho graça; ajudam-me a entender as piadas dos desenhos animados para adultos a que assisto enquanto como sanduíches; estimulam-me a modelar figuras dos meus trabalhos O jantar de Lúcio Bezerra e Os tormentos de Santo Antônio; previnem-me de aproximações futuras danosas; e, mais do que tudo, fazem-me concordar com os panegíricos à solidão que Schopenhauer desenvolve em Aforismos para a sabedoria de vida (compilado tirado da obra maior Parerga e Paralipomena): 

“Por conta da longa experiência, deixou-se de esperar muito das pessoas, pois, tomadas em conjunto, não se ganha nada ao conhecê-las mais de perto. Antes, sabe-se que, salvo raras exceções felizes, nada mais se encontrará entre elas a não ser exemplares bastante defeituosos da natureza humana, nos quais é melhor nem tocar.”

Sendo da opinião de que os vícios são muito maiores que as virtudes na humanidade, não havia motivo para começar a categorizar “as bondades” dos meus pares, apesar, claro, de ver belezas pontuais em alguns comportamentos. Estou aqui para falar do que abunda e grassa, e não para tecer loas à esperança dos bons espíritos porque na segunda série uma professora sentimental convocou seus outros alunos mais abastados a dar algum presente de aniversário à pequena bolsista da sala (somente muitos anos depois entendi a estranheza de ter recebido vários brinquedos usados na minha data querida quando não era nenhuma tradição nos outros aniversários que trouxéssemos coisas para os coleguinhas). Não faço teorias de casos excepcionais, e o geral, que é a realidade mais notória, está contaminado por parasitas. 

A dificuldade que as pessoas têm de detectar parasitas e extirpá-los está primeiramente num problema ocular: não se enxerga bem, enxerga-se o que se quer enxergar, tenta-se adotar o otimismo para interpretar as enfermidades humanas, como se a característica “ser otimista” fosse uma espécie de virtude – levando a que nós, os “pessimistas”, sejamos considerados o câncer, quando nosso ofício genuíno é o oposto: promover uma rede de quimioterapia. Depois, ocorre que parasitas são alvo de outros parasitas, e há confusão quando diminutas perfídias cotidianas acabam naturalizadas por todos: a falsidade é tomada como diplomacia, a engenhosidade para o mal é estratagema justificado, o esnobismo é bom gosto, etc. Se ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão, por que eu deveria me importar? Importo-me porque talvez escreva para espíritos positivos e porque os maus que me leem podem aprender coisas sobre si mesmos (quem vê de fora às vezes vê melhor). Estes podem melhorar, cair em si, abandonar um pouco a dissimulação que os deixa presos no meio do esgoto. É verdade que não creio em conversão, mas qualquer benfeitoria no caráter de alguém trevoso pode gerar uma mudança que trará mais paz aos que convivem com ele. E em pequenas mudanças eu acredito. Por último, o reconhecimento dos parasitas demora ou inexiste porque muitas pessoas se acostumaram a operar de forma muito simples – usando o consciente e acreditando que os seres humanos valem pelas operações que fazem conscientemente. Isso merece alguns parágrafos. 

Não usarei os termos no sentido técnico (esqueci os conhecimentos básicos para tal), mas como são concebidos pelo vulgo um pouco esclarecido. Há ações que fazemos conscientemente e há aquelas que fazemos inconscientemente. Alguém pensa com todas as letras “vou atrapalhar os planos do meu inimigo” e faz isso. O que é esse alguém? Raro, já que o habitual é que danos planejados a outros venham do nosso inconsciente ou de uma sala intermediária que fica entre a do consciente e a do inconsciente. Aqueles que querem nos prejudicar não planejam, como vilões de novela atrás da porta esfregando as mãos de olhos arregalados e cabelo desgrenhado, o nosso mal de maneira consciente. Se acusados dos males que nos infligem, negam, mas não apenas por cafajestagem, e sim porque aquilo que arquitetaram ficou em um plano diferente que eles acreditam não ser de sua responsabilidade acessar à caça de faltas. A diferença aqui não é como entre crime doloso e culposo, porque o parasita sabe o que está fazendo ao parasitar e ele costuma ter intenção de causar dano. A diferença é que ele não se sente culpado por ações, palavras, trejeitos ruins que foram elaborados fora da sua consciência – onde as lâmpadas são fortes e estão todas acesas –, como se o que viesse do inconsciente (ou da sala intermediária) não tivesse tanta gravidade. O que o consciente não traz à luz não gera culpa clara, e o parasita poderá sempre dizer, quando raramente acusado por quem entendeu seu funcionamento, que “não foi a intenção” – acreditando um pouco nessa mentira. 

Nós podemos não dar o valor devido ao que está atrás da nossa consciência, oculto ou semioculto, mas o cérebro, com sua complexidade extraordinária, muitas vezes dá. Mesmo sem fazer estudos claros – conscientes – sobre o comportamento dos outros, nós podemos saber pelos detalhes quem nos quer na vala, quem faz com que nos sintamos mal com nossas roupas, quem nos bajula por interesse. 

Em Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face (Vozes), o sociólogo canadense Erving Goffman faz boa parte da análise sobre interações entre pessoas nisso que considero como “uma segunda sala”. Por exemplo, ao falar sobre preservação e perda da fachada: 

“[…] quando uma pessoa é pega fora de fachada porque não esperava ser envolvida numa interação, ou porque sentimentos fortes perturbaram sua máscara expressiva, os outros podem, de forma protetora, dar as costas a ela ou à sua atividade por um momento, para que ela tenha tempo de se recompor.”

Esse comportamento de quem deseja salvar a fachada alheia, tão comum nos relacionamentos, está na segunda sala, está internalizado, não é preciso refletir sobre ele para agir. Então que se você chega em casa num horário atípico e seu filho adolescente está procedendo de maneira diferente, como quem não esperava sua entrada naquele momento, é possível que você evite fazer grande contato visual nos primeiros instantes para que ele se restabeleça. Não há uma teorização consciente “meu filho está se comportando de forma estranha porque não esperava que eu chegasse” para que se decida agir elaborando “agora vou dar um tempo para que ele retome outra fachada, usual quando estou por perto”. Tudo acontece respeitando uma etiqueta oculta que está na segunda sala. 

E na verdade a maioria das nossas interações com os outros se dá por essa segunda sala, por comportamentos que estão internalizados respeitando um extenso e sofisticado livro de regras minuciosas que pouquíssimos conseguiriam colocar no papel se convidados a tamanha tarefa. O conhecimento dessas normas é tácito e um mínimo ato externado tem discursos por detrás. Mais Goffman:

“Quando ele é abordado para conversar, ele precisa assentir ao pedido dos outros para salvar a fachada deles. Uma vez engajado na conversação, ele deve exigir apenas a quantidade de atenção que for uma expressão apropriada de seu valor social relativo. Pausas indevidas se tornam sinais potenciais de não se ter nada em comum, ou de ter um domínio de si insuficiente para criar algo a dizer, e por isso devem ser evitadas. Da mesma forma, interrupções e falta de atenção podem comunicar desrespeito, e devem ser evitadas a não ser que o desrespeito implicado seja uma parte aceita da relação. É preciso manter um verniz de consenso através da discrição e de mentirinhas para que a suposição de aprovação mútua não seja depreciada. É preciso lidar com a retirada de forma que ela não comunique uma avaliação inapropriada.”

Quanto mais intimidade, menos tensão de seguir essas regras, e é por isso que nas relações profissionais, em que vivemos com pessoas com as quais não escolhemos estar, existe tanta firula respeitada inconscientemente. O “chefe legalzão” nunca será tratado com espontaneidade, mesmo que tente transformar o setor numa escola Summerhill, porque é indelével o entendimento de que ele é alguém com poderes dentro de uma hierarquia. E o funcionário que fala pelos cotovelos com seus colegas horizontais, interrompendo e não deixando ninguém fazer comentários breves nos seus monólogos, inconscientemente atua como um grande ouvinte polido quando tem que interagir com o diretor da instituição. Se observadores atenciosos lhe disserem “você age de uma forma conosco, e de outra forma com o diretor”, é possível que diga não perceber diferença a não ser no trato mais formal que concedeu. Silêncios constrangedores entre colegas? Isso se resolve com papo furado, porque o silêncio causa mal-estar e precisa ser vencido – tudo de acordo com uma etiqueta oculta que todos os adaptados à vida social seguem. 

Inconsciente, inconsciente, inconsciente; segunda sala, segunda sala, segunda sala. Isso nos rege, e mata uma presunçosa noção de livre arbítrio que a maioria ainda insiste em reivindicar que impera. 

Se grande parte do que fazemos e dizemos age através de outro sistema, com os parasitismos não é de outro modo. Meu ponto é: a perniciosidade existe e o hospedeiro da praga é culpado. Se deixássemos para afastar das nossas vidas somente quem faz o mal às claras, quase não haveria quem repelir. É na constância de atitudes parasitárias incômodas que se detecta o que precisa ser exterminado, e talvez esses infortúnios que tratamos como meras verrugas escondam uma enorme massa de pus interna.

Vejamos. Estamos todos conversando sobre as graças de viajar, e um sujeito, que em meu compilado chamo de Ronaldo Ésper tácito, chega ao grupo e solta: “viajar é bom, mas e essas pessoas que se acham só porque perambulam pela América do Sul?”. O assunto era agradável e ele trouxe um ponto futilmente amargo, sem tom humorístico, para alfinetar alguém dos arredores que resolveu perseguir de graça – como sabia que o perseguido só tinha ido a países da América do Sul, aproveitou o ensejo para também ser Esnobe. Você diz que é só uma verruga, eu digo para esperarmos e vermos se não há mais de onde essa protuberância arredondada e peluda veio. Alguns dias depois esse sujeito revira os olhos ao ver que uma colega de outro setor veio trabalhar de saia curta, e comenta com alguém que ela não tem pernas para usar esse tipo de roupa, até porque tem varizes. Talvez você – sonso, bundão ou toupeira – pense que são “apenas umas verrugas que todos carregamos conosco”, mas na minha opinião já começa a incomodar e dar mostras de parasitismo, até porque os comentários vêm embalados em papel “eu não disse nada de mais com minha sutileza”. Não que eu não consiga conviver vendo essas verrugas – vivo sem chiliques no mundo mesmo considerando que as pessoas formam juntas uma textura de sagu –, mas se o fenótipo comportamental revela tantos miúdos parasitas, como é que estão os genes desse sujeito, que contêm muito mais informação podre que as meras verrugas não nos deixam ver? Ora, onde há fumaça há fogo, e pequenas doses de amargura manifestadas en passant publicamente podem ser sinal de que dentro da pessoa há uma adega colossal em formação. 

Mas ninguém está livre de proceder como um parasita e nunca foi minha intenção santificar as relações e purificar as almas. Também não estou convidando a todos que abandonem tudo e fujam para o mato ou para as grutas. A função deste compilado, que fala de comportamentos danosos com os quais inclusive às vezes me identifico, é despertar atenção para o pequeno dano que, se reiterado ou parte de uma prática sistemática, pode estragar o alvo dia a dia, semana a semana, mês a mês “como quem não quer nada”. Não é paranoia: é observação e leitura do implícito. Publicitários e psicólogos da propaganda estudam gestuais, tons, tipografia, cores, modelos e disposição fotográfica para ludibriar o consumidor e fazê-lo aderir à campanha porque sabem que os detalhes afetam. Parasitismos do cotidiano não nos afetariam por causa de qual explicação barata?

Há poucas coisas que considero mais libertadoras do que extirpar uma presença danosa que vai nos destruindo pelas beiradas, com ou sem intenção consciente, aniquilando nosso bem-estar, nossa autoestima e nosso tempo. Escolhi fazer coisas demais e me interessar por coisas demais – cada minuto desperdiçado com quem não vai me fazer agradável companhia ou somar é um pequeno abuso. Às vezes não podemos optar por nos afastar desses abusos porque fazem parte de relações humanas indispensáveis, mas o maior erro é ficar ao lado dos abusadores na parte da vida que é discricionária a nosso favor. 

Não apreciando ser mal entendida, é cabível aqui uma explicação aos simples ou aos que podem fazer mal julgamento das minhas palavras se forem novos leitores: execro amizades “motivacionais”. Quando falo de evitar parasitas pelo bem-estar e pela autoestima, não estou dizendo que devemos ter como companhia pessoas que dizem o que queremos ouvir (muitas vezes mentindo), que falem feito disco riscado que “vai dar tudo certo sempre”, que nunca nos tecem críticas, que estão sempre interessadas nas nossas questões carentes, que aplaudem qualquer poema medonho que recitamos na praça para grupos da terceira idade. Essas pessoas: a) não existem, b) são dissimuladas, c) são dissimuladas e querem sugar alguma coisa vital de nós, d) são abobalhadas e provavelmente sonham voar peladas com os pássaros enquanto saboreiam nuvens de algodão-doce no céu. Um sujeito pode ser muito duro numa crítica a uma lacuna nossa ou a uma ideia que levantamos apaixonadamente – sem qualquer parasitismo. Ele pode até ser provocador sem parasitismo. Já um adulador, um alisador de cabelos, um “vem, me conta seus problemas” pode ser tão nocivo que por trás de tanta amabilidade e interessados discursos de autoajuda existe um monstrengo usando óculos escuros enquanto bebe nosso sangue com canudinho (de plástico) e coça as próprias costas com as unhas dos pés.

Aos que tentam se mostrar o budista evoluído essas-coisas-não-me-afetam-eu-não-dou-bola, o argumento aqui não é apenas de que você sai prejudicado quando é atacado por parasitas. É também: mesmo tendo uma (hipotética, pretensiosa, simulada, inacreditável) barreira que o impede de ser atingido pelas atitudes e falas dessas pragas urbanas e rurais, por que você quereria estar ao lado de uma pessoa que tem paixão reles pela sua destruição? O parasita, ao danar os outros, não está querendo afastá-los para viver plenamente sua antissocialidade. Ele precisa estar com as pessoas para estragar a vida dessas pessoas, sempre. Muitos parasitas estão rodeados de “amigos”. Falo de “quem faz mal a você”, mas aproveito para convidar ao abandono do egoísmo, pois alguém pode ser seu céu, mas o parasita gratuito declarado e constante de outros. Muitos alienados dizem que a ditadura militar não foi um tempo ruim porque na época eles não perceberam nada de errado, não foram censurados, não apanharam, não foram torturados, não tiveram seus parentes mortos. A postura “o que não me afeta diretamente não é problema meu” é estúpida e injusta. A Guerra na Síria não é irrelevante só porque mesmo com ela em andamento eu consigo acordar, coçar os olhinhos, fazer o almoço, ir para o trabalho, voltar em segurança e ver um filme. Seu precioso amigo te insufla e protege, mas causa dano perverso aos outros sem justificativa razoável? Ele é um parasita. Você é um cúmplice. Não espere Harvey Weinstein ser repudiado publicamente para ficar falsamente chocado com um comportamento frequente que você conhecia e contemporizava. (Houve hipocrisia em muitos “amigos” de Weinstein lhe virando as costas por coisas que já sabiam que ele fazia. Apenas porque o lodo veio parar na pauta do ano. Não foi preocupação com o mal que seu jeito predador causou, foi oportunismo e fingida conscientização de manada.)

Segue, portanto, meu compilado em partes (ainda não sei em quantas partes de postagens ele ficará organizado). Falarei de coisas mundanas e baixas não só porque nunca me comprometi a transformar este blog em sofisticação culta – já estão avisados; não venham com seus “ué, esperava grandes temas e topei com esses assuntozinhos de cozinha” –, mas porque a organização teórica circunspecta ou faceira da imundície humana muito me interessa. 

Antes das categorias, apresento-lhes Os Diabos Bárbaros:













***

As categorias abaixo elencadas não têm o mesmo peso. Julga-se caso a caso, conforme a pessoa, o contexto e a frequência do parasitismo. E sei: quando alguém tem virtudes demais, é objeto do nosso amor ou é um gênio encantador em dada área, costumamos desculpar certos parasitismos, constantes ou esparsos.


ENTEDIADO 

Quando George Orwell representou um pobre para escrever uma das melhores peças de jornalismo literário já feitas – Na pior em Paris e Londres: a vida de miséria e vagabundagem de um jovem escritor no fim dos anos 1920 (Companhia das Letras) –, percebeu que sua instrução era um trunfo quando comparada à nulidade intelectual de tantos colegas vadios com os quais dividia espaço em albergues, sarjetas e subempregos. Analisa: 

“Quanto a Paddy, era na verdade a melhor vida que vinha tendo nos últimos dois anos. Seus interlúdios da vadiagem, os momentos em que conseguira pôr as mãos em alguns xelins, tinham sido todos como esse; a vadiagem propriamente dita fora um pouco pior. Ouvindo sua voz lamurienta – ele sempre se lamuriava, quando não estava comendo –, percebia-se que tortura o desemprego devia ser para ele. As pessoas se enganam quando pensam que um homem desempregado se preocupa apenas com a perda do salário; ao contrário, um analfabeto, com o hábito do trabalho arraigado, precisa mais de trabalho do que de dinheiro. Um homem instruído consegue aguentar a ociosidade forçada, que é um dos piores males da pobreza. Mas um sujeito como Paddy, sem meios de preencher o tempo, sente-se tão miserável sem trabalho quanto um cão acorrentado. Por isso, é absurdo pretender que se tenha mais piedade daqueles que 'decaíram na vida'. O homem que realmente merece piedade é aquele que sempre esteve por baixo e encara a pobreza com a cabeça impotente e vazia.”

No caso de Paddy, estamos falando de alguém que se tornou ocioso mentalmente pelas circunstâncias de classe, mas como proceder com quem está pleno de afazeres e possibilidades e ainda assim espera que os outros o animem? 

Minha falta de respeito com os entediados acontece porque os considero negadores da vida, como se tivessem a possibilidade de realizar grandes coisas – nem falo de revoluções, mas de trabalhos manuais, aprendizado de línguas, voluntariado, vício musical e estudo de ciências – e ainda assim optassem pelo sofá, na expectativa de quem os erga… para depois voltarem ao sofá outra vez. Era um drama comum na vida de tantas donas de casa que não sabiam o que fazer consigo mesmas no século XX: então organizavam e limpavam o lar, deixavam o jantar a postos e depois tamborilavam na mesa à espera de que o marido trouxesse novidades e alegrias dos acontecimentos lá de fora. “Sou uma anulação, entretenha-me” é seu clamor sussurrado. Compreendo que alguns possam pensar que são indivíduos dignos de compaixão, e não de serem carimbados como parasitas, mas fico realmente angustiada de ter por companhia quem se considera uma chatice e aguarda que eu traga o ânimo, o assunto e os souvenires do mundo. E se ocorre de eu sentir pena por essa situação lamentável, o real nome do que me toma é desprezo, ainda que sendo um “desprezo benevolente”. Como amar quem não se ama? Como admirar quem enxerga no relógio um fardo? Ama-se com dó e não há admiração. 

Schopenhauer, em Aforismos para a sabedoria de vida

“No entanto, cada um, em geral, só pode estar em uníssono perfeito consigo mesmo, não com o amigo ou a amada, pois as diferenças de individualidade e disposição conduzem sempre a uma dissonância, mesmo que leve. Por conseguinte, a paz verdadeira e profunda do coração e a perfeita tranquilidade mental, esses bens supremos na terra depois da saúde, são encontráveis unicamente na solidão e, como disposição duradoura, só no mais profundo retraimento.”

E ainda: 

“Pois é na solidão, onde cada um está entregue a si mesmo, que se mostra o que ele tem em si mesmo. Nela, sob a púrpura, o simplório suspira, carregando o fardo irremovível de sua mísera individualidade, enquanto o mais talentoso povoa e vivifica com seus pensamentos o ambiente mais ermo.”

Talvez as lições que os pais mais deveriam ter em mente ao educar filhos preparados para agir com maturidade e autonomia diante das alegrias e adversidades típicas de uma existência comum sejam: 

1. A vida é muito preciosa, seja grato.
2. Não exulte demais com a glória, não se aborreça demais com a intempérie.
3. Saiba apreciar a própria companhia. 

É incômodo quando um amigo/parceiro esnoba seu valor, agindo como se você fosse parte de um horário em uma linha de sua lotada agenda (o que ainda faz com esse contato que é tão empresarial?), mas o extremo – aquele que aguarda, murcho como um pano de chão velho, você aparecer para sentir que vai começar a viver – também é uma tristeza. 

O perfil relatado é algo que só tolero em cachorros. Não espero que o cachorro abane o rabo para si mesmo. Fico feliz se ele me espera para abanar o rabo*. 

*Pero no mucho. Se pensar um degrau além, volto ao que já disse aqui: no meu planeta ideal não existiriam animais domésticos, e portanto o lobo não teria sido reduzido a esse necessitado de pouco amor-próprio que é o cão. Mas não é sua culpa, mas não é sua culpa.


ADAPTÁVEL 

Nós influenciamos os outros e somos influenciados por eles de diversas formas. Qualquer pessoa que atravesse nossa vida e tenha alguma mínima atuação exerce movimentações dentro de nós, nem que seja para teorizar “cruzes, esse sujeito que falou comigo agora tinha unhas tão sujas”. Um dia você percebe que está usando com naturalidade uma expressão que não é sua, mas do seu parceiro, e também é engraçado perceber quando ele se apropriou de termos seus. Tenho espalhado há anos meu “olha só que bizarro isso” e sempre fiquei honrada ao ver que, de tanto usar a palavra, pessoas do meu convívio incorporaram “bizarro” a seus vocabulários particulares. Se nos afetam para o bem, para o mal, para o despertar de um comportamento, para a morte de um espírito antiquado, para “é exatamente o tipo de mala que não quero ser”, inúmeras possibilidades há, mas o ponto é que de alguma forma somos afetados. Corriqueiro, humano e interessante. 

A versão extrema do “me deixo afetar pelos outros” está no perfil do Adaptável, que é o estereótipo da ovelha. Também se parece com a personagem de Julia Roberts em Noiva em fuga (Runaway bride, 1999): a cada namorado que arranjava, ela queria ter uma conexão e adaptava seus gostos aos deles – especialmente no modo como gostavam dos ovos, se mexidos, se fritos, etc. Um novo namorado que gosta de ovos de outro jeito? Ela passava a gostar dos ovos daquele jeito. 

Os três tipos mais frequentes de figuras aos quais esses parasitas tentam se adaptar, apagando parte de si mesmos, são: 

1. O parceiro – A mulher gostava de futebol quando o namorado gostava de futebol, agia como se fosse da personalidade dela acompanhar os campeonatos e sair de casa sob chuva para ver o time perder para outro qualquer. O relacionamento acabou e ela nunca mais foi a um jogo, ou seguiu os torneios. Mas o novo namorado é especialista em música clássica, e agora ela é uma expert em Schubert. Quando o namoro deles acabar, ela vai conhecer um homem místico e passará a ser mística também. E nunca mais ouvirá Schubert. 

2. O chefe – Quando chefes extrapolam suas funções e querem controlar os funcionários para além do que diz respeito ao trabalho, isso é claramente errado e intrusivo. Mas há funcionários que também flutuam suas personalidades conforme as personalidades dos chefes, sem nenhum tipo de autoestima, e atuam (para além do que diz respeito ao trabalho) de acordo com o que pensam que agradará a esses chefes. Se um chefe é desbocado, o funcionário acha de bom tom dançar junto e soltar uns palavrões que nunca estiveram na sua boca. Se o chefe é religioso, o funcionário começa a falar coisas sobre Deus, adota seguidamente o “graças a Deus” e o “se Deus quiser”, deseja o cafona “descanso abençoado” aos colegas. Se o novo chefe é um exibido que fala alto e adora praias, de repente os adaptáveis do setor estão todos insanos falando alto e conversando seguidamente sobre praias, e por causa disso alguém até cogitou abrir um financiamento para comprar uma casa na praia. Há quem se vista como o chefe gosta, fale como o chefe gosta e pense como o chefe gosta. 

3. Alguém que se admira – Afonso conhece um novo colega de faculdade e o admira tanto por tanta coisa: sua autoestima, seu humor, o modo como escolhe as cores que veste, suas opiniões políticas, seus princípios, seu conhecimento botânico. Quer tê-lo como amigo e por isso tenta ser seu igual, tanto para se exibir como gêmeo quanto para conquistá-lo ao seu perímetro. Afonso pode jogar abertamente, revelando às claras que admira o outro e quer tê-lo ao lado porque interessantíssimo, ou pode fazer um joguinho te-quero-mas-sou-arrogante e fingir que não está nem aí – estando, claro, sempre aí. No dia em que o interesse acabar – ao natural ou porque foi rejeitado pelo outro, que percebeu sua fraqueza, carência e dissimulação –, Afonso largará tudo e voltará a ser o que era. Ou adotará um novo parâmetro, porque a busca não tem fim.

A necessidade de implantação de uma boa cultura organizacional nos ambientes de trabalho ocorre justamente porque existe uma tendência à adaptação por parte da maioria das pessoas. As convicções morais e o autoconhecimento, que impediriam dançar uma música da qual não se gosta, são raros. Quando trabalhei na educação infantil, teorizei com mais atenção um padrão lamentável e vezeiro em tantos empregos: quando alguém começa a adotar posturas perniciosas (especialmente chefias e funcionários persuasivos), a janela quebrada dá margem para que isso se torne base da cultura organizacional. Entrei no centro de desenvolvimento infantil e vi que existia o hábito de falar mal dos pais por qualquer coisa e de menosprezar crianças fora do padrão comportamental. Era uma rotina, e estimulada por quem deveria podá-la. Se novos servidores, contratados e estagiários, chegavam para trabalhar, começavam de boa vontade e leveza. Semanas depois já estavam adaptados ao ambiente negativo, superficial e cheio de picuinhas: lá estavam eles rosnando por causa de insignificâncias, debochando dos pais e chamando qualquer criança de “doida” e “esquisita” com desprezo na voz. Há pessoas que mudam quando o ambiente muda e há pessoas que mudam o ambiente. Se aqueles que tentam mudar o ambiente para pior encontram terreno fértil onde arar seus preconceitos, suas futilidades e seus desejos de ver o circo pegar fogo, está criada uma cultura ruim que só tende a piorar e talvez queira eliminar quem não participa da dança macabra. Não aceitar participar de fofocas dispensáveis num ambiente fofoqueiro pode ser classificado como “não tem entrosamento com a equipe”; não rir das piadas machistas recorrentes de um professor papudo e charmoso pode ser classificado como “mau humor; acha-se melhor do que os outros”. 

Não é salutar que uma pessoa mude (mesmo que “para o bem”) com intuito de agradar a seus pares. A mudança só tem dignidade após tomada de consciência e internalização sincera. Isso significa que, tão logo arranje outros pares, esse renovado adotará novos comportamentos, porque está perdido e não se conhece. Parece que a folha de alface busca arranjar modas e personalidades onde se encostar para não encarar a própria miséria de estrutura. Mas quem quiser ser referência para esse tipo de coitado vestindo sempre roupas que não são as suas, que seja. Só não pense que será vitalício. 

No final de Noiva em fuga o personagem de Richard Gere obriga a personagem de Julia Roberts a definir quem ela é de verdade: então ela revela de que forma gosta dos ovos.


ESNOBE 

Claro ou miudinho, o esnobismo frequente é um câncer. Relacionar-se com quem faz de cada coisa um motivo para comparação e competição ordinária é masoquismo, já que o esnobe se faz sobre os verbos invejar e desprezar. Quando alguém tem algo melhor que ele, é vítima de inveja. Quando alguém tem algo pior (que ele, em seu manual das hierarquias, convencionou qualificar como “pior”), é vítima de desprezo. Em Snobbery, the american version (não traduzido para o português, Mariner Books), o escritor Joseph Epstein se põe a destrinchar em 250 páginas esse vício tão comum. Para começar, define de forma simples o esnobismo: 

“The essence of snobbery, I should say, is arranging to make yourself feel superior at the expense of other people.” 

Não é apenas “sentir-se superior”, mas comemorar a suposta inferioridade alheia porque é às custas dela que se pode sentir superior. O esnobe tenta salvar seu modo de ser tratando-o como requinte, gala, jeitão flamboyant, bom gosto, mas a condição, se reiterada, é infeliz: 

“So little does it take to lift a snob's spirits, and so little, too, to send him or her plunging, that the life of a snob is likely to be fairly jumpy. The snob can have only one standard, that of comparison. And comparison inevitably implies competition, rivalry, almost full-time invidiousness. The snob is always positioning himself. He needs to know that he is in a better position than the next person. The true snob can know no lengthy contentment. If he doesn't feel his own superiority, he is likely to feel an aching sense of inferiority, or of at least not being in the position he wants to be in.” 

Conheci e conheço esnobes, que têm no esnobismo um parasitismo marcante e por isso merecem ser chamados assim, com uma palavra que fala de uma integridade. São pessoas não apenas lamentáveis por viverem um jogo de competição frívola que, nas palavras de Epstein, muitas vezes jogam sozinhas, mas são também tensas. Obviamente não declaram “sinto que fico nervosa quando alguém é melhor do que eu, tem gosto estético claramente mais refinado que o meu, porta-se melhor do que eu, tem coisas mais interessantes que as minhas, leva uma vida espontânea que não consigo emular”, porque é raro quem admita, com sinceridade, sentir inveja, inferioridade e infelicidade. Mas o corpo e a cara dos esnobes passam informação sobre seu nervosismo competitivo, sobre a tensão que os atormenta, mesmo quando querem disfarçar isso em falas típicas de A raposa e as uvas ou em justificativas compensatórias para o que consideram fracasso: “sim, José tem o carro muito melhor que o meu, mas para que gastar uma fortuna num carro melhor se a vida é curta? Prefiro viver.” (dito com frequência); “O marido de Zelda é culto e participativo no lar, mas pelo menos o meu marido não está numa cadeira de rodas. Coitada da Zelda.”; “O filho da minha amiga conseguiu entrar no curso de Medicina da USP enquanto o meu não passa em nenhuma particular sequer, mas o meu filho é muito mais bonito, enquanto o filho dela tem um cabelo estranho e um nariz torto.” 

No bom (mas superestimado) Psicopata americano (American psycho, 2000), o competitivo protagonista, Patrick Bateman, passa mal no que considero uma das melhores cenas do filme por lidar com a sutileza da inveja entre esnobes doentes: quando Bateman (interpretado por Christian Bale) mostra numa mesa de reuniões seu novo cartão de visitas, Van Patten mostra também o dele, declarando que o de Bateman “não é nada” e colocando os cartões lado a lado para comparação. Após uma rodada de exibição de cartões entre colegas, que vai deixando Bateman suado e nervoso porque está comparando os papéis, a tipografia e outros detalhes que o mundo rudimentar jamais notaria, alguém mostra o cartão de Paul Allen, ausente naquele instante. Paul Allen (personagem de Jared Letto) é o colega fino e despreocupado que Bateman elegeu internamente como rival, e ver que o cartão de Allen é melhor que o dele – tem uma “coloração adorável”, marca d'água – é quase motivo para uma síncope de Bateman. 

Muito folclórico que sujeitos rivalizem a respeito de um mero cartão de visitas? Não acho. Qualquer um que conheça esnobes e os tenha sob observação sabe que eles levam a ferro e fogo a máxima de que o diabo está nos detalhes. 

Em Snobbery, the american version, Epstein conta que sua mãe era desprovida de esnobismo, mas eu não acredito nisso e não acredito em ninguém que tente santificar pais, avós e filhos. A depender dos relatos sobre pais, avós e filhos em tantas memórias, escritas ou oralizadas, o mundo está cheio de gente com princípios que não tem quase nenhum vício (ou só têm aqueles vícios que são cinismo “confessar”); e é interessante saber dessas pessoas maravilhosas que foram esses pais e esses avós e esses filhos, e depois sair viajando pelas cidades sem conhecer um indivíduo sequer que seja coerente com tais retratos falados de plenas boas almas. No que acredito: em maior ou menor grau, todos somos esnobes, o problema está em passar do ponto, levando a característica a ser uma categoria da parasitologia humana. 

Aqueles que me conhecem podem dizer “engraçado, Barbara, você falar disso, já que se acha a rainha do bom gosto e pensa que a maioria esmagadora tem péssimo senso estético para canetas, canecas, fundos de tela de computadores e celulares, bolsas, calçados, tecidos, livros, caligrafia, filmes, bordões, estampas, quadros, museus, qualidade fotográfica, diagramação, porta-copos e móveis”. É verdade. Fico um pouco assustada em ver como as pessoas têm mau gosto em tantas áreas simultâneas, mesmo as que creem terem formado uma linha estética agradável, e costumo achar minha avaliação imensamente superior e justificada. Mas não considero esnobismo no grosso das vezes – a não ser quando vejo inimigos com mau gosto –, porque eu gostaria que todo mundo fosse melhor nessas searas. O esnobe quer ser superior sempre e seu vício depende dessa hierarquia de “melhores e piores”; se alguém se iguala a ele, seu sentimento não é de alegria “poxa, que bom, que bom”, mas de raiva e desdém. Eu não, caros. Eu gostaria que todo mundo aprimorasse seus gostos, não para que fossem como os meus – uma sociedade em concorde estético seria chata e limitante –, mas para que houvesse mais critério e rigor, e no fim tudo ficasse mais embelezado. Inclusive aproveito que estou aqui no rio lavando minhas roupas na frente de todos para agradecer aos que me indicaram, com interesse no meu aperfeiçoamento, bons livros, bons filmes, boas marcas, boas compras, bons hábitos. Até parasitas execráveis com suas caras infelizes e detonadas de “solidão e desespero na multidão” já me indicaram coisas aproveitáveis. Usualmente gravo nesta memória, tão seletiva, quem foi responsável pelo quê.


HIPÓCRITA, OU CONTRADITÓRIO PERNICIOSO 

Existe quem abdique de ter princípios fortes para não assumir responsabilidade sobre a dificuldade de colocar em prática o que é apregoado como um sistema de valores nobre. Mas também há quem possua princípios flutuantes que são convocados conforme a conveniência. Todos somos um pouco hipócritas, pois existe uma coletividade massacrante que nos impede de atuar de acordo com o que moralizamos, mas hipócrita em alto grau que trata com oportunismo suas variações de valores merece, esse sim, ter anunciado o adjetivo na praça, pelo menos temporariamente, para que ninguém se iluda a seu respeito ou para que ele desperte. É raro, mas há despertares. 

Danilo Gentili, humorista e apresentador do SBT que prosperou apesar da falta de traquejo para fazer rir e entrevistar, foi recentemente condenado por ter injuriado o deputado Marcelo Freixo em redes sociais e também por ter cometido injúria contra a deputada Maria do Rosário ao chamá-la de “falsa”, “cínica” e “nojenta”. Ao receber notificação pedindo para que apagasse as ofensas à deputada, Gentili aumentou o espetáculo ao rasgar o documento, colocá-lo dentro das calças e chamar a querelante de “puta”. (Depois saiu-se com uma justificativa sonsa para este “puta”: disse que tanto não considera xingamento que é a favor da profissionalização da carreira de prostituta.) 

A questão toda comoveu a classe humorística em torno da defesa da liberdade de expressão, e levantou questionamento sobre o exagero que o Código Penal brasileiro dá aos crimes contra a honra, parecendo que estamos numa Idade Média que substituiu os duelos de espadas por penalidades judiciais severas pensando que nisso havia demonstração categórica de evolução da civilidade. Os indignados estão certos e a lei é de fato estapafúrdia. Em 1945 o renomado jurista italiano Francesco Carnelutti já defendia, em seu curto texto O problema da pena, que houvesse uma separação mais rigorosa entre crimes graves e crimes quase insignificantes; nessa toada, tipificações como injúria e lesões corporais levíssimas migrariam para a categoria das contravenções. Por essa fórmula, no nosso sistema um xingamento estaria junto às transgressões de baixo dano, como a prática do jogo do bicho (art. 58 da Lei das Contravenções Penais) e o simplório “servir bebidas alcoólicas a quem já se acha em estado de embriaguez” (art. 63, II, idem), que quase nenhum garçom respeita. Até hoje muitos doutrinadores manifestam o mesmo ponto de vista, inclusive para dar mais importância a violações penais drásticas – como o homicídio, o estupro e o roubo –, mas nossa legislação continua tratando com rigidez essa coisa pequena, variável e subjetiva que é a ofensa verbal solta e não reiterada. 

Danilo Gentili está um rei no simbolismo criado ao seu redor sobre a liberdade de expressão, o fazer humorístico e a excessiva seriedade que nossas leis dão à injúria. Mas merece ser destronado, porque sua causa é hipócrita. Em 2016 Gentili participou de uma edição do Bate-Bola, na ESPN. No programa Linha de Passe, do mesmo canal, o comentarista José Trajano criticou a emissora por convidar “um sujeito que faz apologia do estupro” para participar da programação. Gentili achou ofensivo e processou Trajano por injúria, além de pedir uma indenização de mil reais. O valor irrisório, “simbólico”, não tem graça, porque a penalidade que ameaçava Trajano era efetiva e poderia marcá-lo como criminoso, gerando graves desdobramentos se cometesse alguma infração realmente importante e tivesse maus antecedentes em decorrência daquela condenação por injúria. O caso não deu em nada, felizmente

“Segundo a decisão do juiz José Zoéga Coelho, do Juizado Especial Criminal, quando o humorista 'delibera tomar valores sensíveis da sociedade contemporânea como tema de suas manifestações, põe-se voluntariamente em terreno aberto para críticas – que então não pode estranhar'.” 

Gentili é mimado. Diz o que quer sobre qualquer um com roupagem de comédia, mas sobre ele não se pode falar o chocante. No mundo dos patetas célebres, não está sozinho, obviamente. Bolsonaro também louva e condena a injúria conforme o caso. Se ele insulta e é processado, a lei é uma frescura. Se é ele o insultado, processa o ofensor buscando a mesma lei que repudiara. Não me espicho aqui porque às vezes, tocada pela racionalidade, compreendo que criticar Bolsonaro é contraproducente. Aqueles que o defendem com febre funcionam em outro sistema operacional no qual é impossível trabalhar.

Outro caso pior e de grande repercussão sobre contradição perniciosa foi o do juiz Roberto Caldas. Era presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi um dos fundadores da Comissão Nacional de Direitos Sociais da OAB, participou de outras comissões sobre ética e erradicação do trabalho escravo, dizia-se preocupado com a questão da violência contra as mulheres e encontrou-se com Maria da Penha, não apenas uma vez, para lhe tecer elogios sobre a causa que ela representava. No ano passado sua ex-companheira veio a público para acusá-lo de agressões, injúrias, espancamentos e ameaças de morte. Babás de seus filhos o acusaram de assédio sexual. Um ex-mordomo confirmou o ambiente agressivo na casa. Roberto Caldas ainda não é condenado e talvez por isso a dureza de um bom processo penal deveria me levar a não julgá-lo já como culpado, mas duvido que seja inocente. Mesmo que fosse algo inocente, seria só de uma parte das acusações, não de todas, pois o mínimo é que há coisas que ele não nega. 


Em terreno de anônimos, o hipócrita pode ser alguém que critica uma pessoa pelas costas, mas na frente dá beijos, faz elogios e concede afagos. Por muito menos esse hipócrita vai cobrar “falta de coerência” de quem é apenas educado de acordo com as normas subentendidas que as situações exigem: 

– Olha lá, vive falando mal do João, mas acabou de dizer bom dia ao João. Pff! É muito falso. 

O hipócrita também pode querer passar uma imagem de bondade, cristianismo e altruísmo, mas sentir prazer ao espalhar uma fofoca tosca, manifestar ojeriza a pobres, prejudicar colegas por questões pessoais mesquinhas, não colocar a mão no bolso pelas causas que diz defender. Num encontro sobre pessoas com deficiência, fará falas genéricas e falsamente interessadas sobre direitos, melhorias, deveres da sociedade, mas no cotidiano chamará cegos de “ceguinhos”, surdos de “surdinhos” e indivíduos sem membros de “os deficientes coitados” – quando já aprendeu que nenhuma pessoa com deficiência e informação quer ser inferiorizada com esses termos. Ele não é hipócrita raramente, como qualquer um pode ser, mas continuamente, quase todos os dias. O que fala não se escreve. Garganteia umas coisas bonitas, mas age de um jeito muito feio. Apontado em sua feiura, arranjará justificativas, talvez até pedirá desculpas. Mas na verdade não se arrepende de fazer o que faz, apenas não aprecia ser desmascarado. E, claro, é dos primeiros a mostrar indignação quando alguma hipocrisia alheia o atinge, e teoriza: “o mundo está mesmo perdido, não se pode mais confiar nas pessoas”. 

Preciso fazer um parágrafo extenso sobre quem diz desaprovar tortura e/ou diz gostar de animais, mas come carne de forma despreocupada e até orgulhosa do próprio “carnivorismo”? 

– Sou contra a tortura de animais, mas acho que eles podem ser nosso alimento se forem abatidos humanitariamente. 
– Não é o ideal, na minha opinião, mas é uma prática bem menos danosa. Imagino que sua carne seja de procedência mais ética, que você procure marcas que fazem abatimento humanitário. 
– Não. 

É um contrassenso tão estranho que não me cabe nos miolos.


PAPO FURADO 

“Papo furado” é uma expressão que vale o que significa. A expressão em inglês também é boa: small talk. Consiste basicamente em conversar coisas que não levam a nada. Nem todos os colóquios precisam de um rumo, mas o que espero deles quando sem objetivo é que pelo menos sejam atraentes, que entretenham. O papo furado não é atraente, e é um sacrifício aturá-lo para quem valoriza o aproveitamento máximo do dia e não gosta de ter pensamentos interessantes interrompidos por ninharias. 

O parasitismo daqueles que gostam de um papo furado – que costumam ser indivíduos que não toleram o silêncio – está especialmente no roubo do tempo. Como os papeadores não têm o que fazer com suas vidas ou não apreciam ter que chafurdar os próprios pensamentos (porque lá só têm um par de tênis, uma colher suja, um jornal de 1999, dois gizes de cera, uma foto rasgada, a lembrança de um verão), vêm a nós para falar sobre… nada. Não há o que falar, mas falam, e falam qualquer coisa. Além de ser trágico quem não consiga viver sem barulho – há culturas muito distantes da nossa em que é perfeitamente normal as pessoas não conversarem quando não têm nada a dizer –, o obcecado com papo furado é um invasor que deveria nos ver com a placa “fale comigo somente quando tiver algo bom, útil, interessante ou divertido (ei, divertido para ambas as partes) para dizer”, porque às vezes parece que ele quer nos “ajudar” tirando-nos da quietude. Quem já fez leituras em bibliotecas, parques ou nos arredores do ambiente de trabalho já deve ter sido interrompido muitas vezes por pessoas que pensam que estar lendo significa estar fazendo nada – e vêm para nos resgatar, com papo furado, do que consideram uma estranha experiência de solidão. Meu verdadeiro eu, que surgiria com mais facilidade se alcoolizado, diria: “você não está vendo que estou lendo? Como é que me interrompe para falar sobre coisas que não me interessam? Não resolvi ler por falta de ter com quem conversar”. Dificilmente a conversa que interrompe um livro é mais interessante que o livro. O Rei Davi devia ter colocado isso nos Salmos. 

“Estou lendo, não estou sem fazer nada” vai para a lista de estampas para futuras camisetas que serão usadas em público, junto com “I don't know. I don't care.”, “Hoje não, obrigada”, “Na verdade, não estou interessada”, “O silêncio é ouro” e “Drosophila melanogaster”. 

Há locais que chamam o papo furado, como táxis, elevadores e copas de ambientes de trabalho. Reúnem-se nesses lugares sujeitos que têm pouco em comum, não querem entrar em assuntos profundos e então promovem orgulhosamente isto: 

– Hoje o elevador estava lotado quando cheguei. 
– Quando cheguei também estava. 
– Pois é, isso porque você chega uma hora depois de mim. 
– É, a gente acha que lota em certos horários, mas dá a impressão de que lota em todos. 
– Deviam fazer elevadores maiores. 
– Ah, sem dúvida. Ou a gente começa a vir de escada, são só quatro andares. 
– Subir é mais tranquilo, mas para descer uma vez escorreguei e quase caí. 
– É porque não colocaram aqueles antiderrapantes no final de cada degrau. 
– Tem antiderrapantes, mas eu escorreguei mesmo assim. Hahaha. 
– Hahaha. 
– A gente ri, mas idosos descendo essas escadas podem se machucar muito se caírem. 
– Talvez devessem trocar o antiderrapante de tempos em tempos. 
– É verdade. 
– Pensando bem, idosos deveriam sempre usar o elevador, mesmo que lotado. 
– Sim, é mais seguro. 
– No Fantástico disseram que é o meio de transporte mais seguro do mundo. 
– Deve ser, esse aqui do prédio nunca deu problema. 
– Mas uma vez deu um tranco quando eu estava lá. Morri de medo. 
– Com o meu irmão já aconteceu isso. Comecei a pensar em subir de escada, mas deixei. 
– Ah, a gente fica com preguiça, né? 
– É, e na correria do dia a dia a gente esquece. 
– Quando minha filha era pequena aconteceu uma coisa muito engraçada no elevador… 
– E o meu caçula que uma vez estava numa escada e…? 
– Pensando bem, já reparou que o material da escada é diferente do restante do piso dos andares? 

Quem não sentiu inveja dos mortos ao ler esse diálogo talvez esteja seguindo o blog errado. 


Viver no mundo das mulheres têm inúmeras desvantagens (desconheço os bandos de “fortes, cheias de sororidade e autoestima” que o feminismo lendarizou), e uma delas é o papo furado focado no tema “dietas”. Nunca conheci ambiente com mulheres onde esse assunto não viesse à tona com regularidade. Homens que se reúnem sem querer começam a falar sobre futebol, política, posições no emprego e a vida alheia. Mulheres nas mesmas condições geralmente falarão sobre rituais de salões de beleza, filhos, a vida alheia e dietas. Acho que as mulheres devem aceitar que gostam de comer e que seus corpos serão maiores do que o padrão, ou então devem agir para emagrecer. Uma coisa ou outra: aceite-se, ou emagreça. Ou melhor, “se não se aceita, mas também é incapaz de emagrecer, o que eu tenho a ver com isso?”. Não: querem falar sobre emagrecer, sobre tipos de dieta, veem uma mesa de aniversário e têm que falar sobre “quebrar a dieta”, etc. etc. e zzzzz, e após semanas, meses, anos, décadas de papos voltados a esse assunto… continuam gordas. A dietamania é um estilo de vida para muitas, e lembro desde a infância de colegas de trabalho da minha mãe que sempre falaram de dietas e hoje continuam falando de dietas, e sendo gordas. Quando emagreceram após adotar catástrofes nutricionais, não conseguiram ficar dois meses magras. 

Como ceifar esse assunto chato e repetitivo? Talvez estimulando a ação: 

– Ai, estou muito gorda, preciso emagrecer. 
– É verdade, está bem gorda, precisa emagrecer, está travando os corredores. 

É muita infelicidade uma mulher passar anos reclamando aos ventos porque está insatisfeita com seu corpo: é muito gordo, é uma tábua, é flácido, piorou na gravidez, é peludo, é pálido, é manchado, a pele não tem consistência depois dos 35, o pescoço é envelhecido. Enquanto isso, tanta gente acamada ou com o corpo destruído por acidentes desejando poder andar, correr, dançar, erguer os braços. Se eu fosse Deus, faria as devidas trocas: quem acha seu corpo um lixo vai ficar acamado ou incapacitado – porque se eu fosse Deus a ingratidão seria um pecado capital, e já estaria a meio caminho do inferno quem pede mais do que agradece –, e quem está acamado e incapacitado, louco para viver intensamente num corpo funcional, vai passar a ter a mobilidade do lamuriento. A menos que o acamado fosse anteriormente um ingrato, que só depois de ter perdido as dádivas corporais é que tenha conferido valor a elas. Ninguém tem que achar que o próprio corpo é perfeito, mas odiar uma máquina incrível que vive e funciona é doentio. 

De qualquer forma, mulheres que têm baixa autoestima não são problema meu e é uma profunda falta de respeito que me obriguem, me aluguem (sem pagamento) ou me interpelem para seus papos furados sobre dietas. Ou filhos. Ou rituais de salões de beleza. Conheçam sua audiência: dá para ver nitidamente quando ela não se interessa por seus assuntos fúteis e pessoais. 


RONALDO ÉSPER TÁCITO 

Famoso pelas agulhadas, o estilista rancoroso é uma treva ambulante. O que dizia, contudo, era notado por todos. Sua versão tácita dá agulhadas tão sutis que se alguém reclamar será tachado de paranoico ou fatalista. “Você está vendo coisas”, “não sei do que está falando”, “imagina se eu quis dizer isso”. As agulhadas podem não ter sido confabuladas com horas de antecedência, recebendo plano esboçado no papel enquanto se cantarola à bocca chiusa, mas quem faz sabe o que está fazendo. Manter amizade ou relacionamento amoroso com esse tipo pode trazer desconforto que não se destrincha bem. Você sente que aquela companhia sempre dá um jeito de fazer comentários que te deixam meio caído – sobre sua roupa, sua casa, seu cabelo, seu sotaque, seus familiares, seu jeito de remar, sua coleção de gibis –, e mesmo assim pode ser incapaz de apontar onde exatamente está a maldade do comentário, de tão sutil. Ele não quer ser engraçado, não quer ser claro. Ele quer minar pela margem onde é difícil identificar o defeito. Numa versão comum e ainda mais danosa, aposta no tom como fala as coisas. Uma senhora que recebe comentários de “que minissaia ousada” pode ouvir isso em diversos tons, que vão da admiração pelo rasgo de convenções ao amargor mesquinho e jeca. Por que manter qualquer contato desnecessário com o amargor mesquinho e jeca?

O maior problema desse sujeito que nos ataca tacitamente com seus tons, olhares e comentários descabidos é que é dificílimo denunciá-lo às multidões sem provas claras. Tudo opera em sistema oculto. No auge da indignação, ao perceber que ninguém que convive com esse crápula consegue ver quem ele de fato é, fica-se na situação alucinada do “não é possível que só eu vejo como é um microarquiteto da microdestruição”. Há grande chance de que morra impune e elogiado. 

Se uma pessoa geralmente boa, educada e segura guarda para si opiniões não requisitadas que possam ofender os outros sobre assuntos delicados, o Ronaldo Ésper tácito é tão amargurado que faz questão de soltar as suas: 

[mesa de bar com colegas da faculdade; no meio, um sujeito tímido que fez cirurgia bariátrica, está emagrecendo rapidamente e ficando mais bonito
Pessoa aleatória para sujeito tímido emagrecido – Ah, eu queria emagrecer também! Acreditam que já entrei na escala da obesidade? 
Ronaldo – É, mas tem que tomar cuidado ao emagrecer. É bom ser devagar, senão fica tudo caído, com pelancas, e o rosto envelhece demais. 

Ele espera bundice: a bundice de não acusar o recebimento da ofensa. Mas se você acusar o recebimento, ele dirá que estava só brincando ou que “o seu caso é diferente”: 

[num grupo “descontraído” de conversa]
Ronaldo – Essas mães que abandonam os filhos com os pais e acham suficiente vê-los só aos finais de semana… Que desnaturadas.
Você, sem bundice – É chato você falar isso sendo que todo mundo sabe que a guarda dos meus filhos foi deixada com o meu ex-marido. 
Ronaldo – Ah, mas eu não falava de você! Você é diferente. O tempo que você passa com seus filhos nos finais de semana é de qualidade, o que importa muito mais. 

Ele queria que você engolisse a agulhada em seco, passiva como uma mosca chupando geleia do pão deixado sobre a mesa. Não tendo feito isso, ele se faz de cínico. 

Ele também costuma gostar de cavoucar nas suas inseguranças. Vai perguntar, chata e constantemente, se você já passou no concurso que almeja; se o tratamento para fertilidade funcionou desta vez; se seu parceiro já arranjou um emprego; se seu filho continua dando problemas na escola. Se as coisas deram certo, vai fingir que fica feliz por você; se deram errado, vai fazer cara de pena e dizer que tudo vai melhorar. 

Mulheres que estranhamente gostam de posar com seus estereotipados amigos gays como se fossem pulseiras descoladas também podem ser vítimas desta figura, pois o tal “amigo gay” afetado que tantas louvam – mulheres lésbicas são consideradas nojentas por muitas dessas moderninhas – costuma ser um Ronaldo Ésper tácito. Faz comentários “ácidos”, espalha fofoquinhas, lança olhadelas estou-chocada-dê-um-jeito-nisso-já-sua-relaxada para partes do corpo e da roupa da “amiga”, parece ter um brilho no fundo do olhar quando a “amiga” relata um problema pessoal. Geralmente se merecem. Ela por achar que é um troféu ter um amigo gay artificial, escandaloso e que chama chiclete de “siclétchi”, e ele por ser um Ronaldo Ésper tácito amargurado que não consegue ver ninguém exultante que já tem que ir lá dar uma estragada. 

A resposta para a pergunta “Ronaldo Ésper e tipos como ele são felizes?” é óbvia. E mesmo que fossem felizes, sem dúvida seria de um jeito patético. 

*

Apesar de tudo isso, é possível justificar certas agulhadas se vierem pela “vontade de justiça”. Conto uma história. Num trabalho antigo que eu tinha, havia uma mulher X de beleza mediana que era fresquinha e criticava uma mulher Y, muito mais bonita, porque essa mulher Y usava botas de salto plataforma. Ora, ninguém é obrigado a gostar dos calçados alheios, mas X fazia questão de olhar de lado, com expressão de nojo, para as botas de Y, num gesto de esnobismo eu-e-meus-calçados-delicados-enquanto-você-com-esses-tijolos. As botas na verdade eram um pretexto para desgostar de outra mulher mais bonita. Uma vez eu estava com X na frente do trabalho e Y passou com enormes botas pink de salto plataforma. X me disse, bufando: “meu deus, não aguento nem ver essas botas dela, me dá uma coisa ruim por dentro”. Não era preocupação com a coluna da colega, não era preocupação com suas panturrilhas e plantas dos pés, não era preocupação porque Y talvez não aceitasse ser baixa. Era pura futilidade. Quem visse de longe suas caretas ao olhar para as botas de Y imaginaria que a repulsa se dava por motivos de falta de higiene – “sinto o chulé daqui de cima onde está o meu nariz!” – ou indignação moral – “nojo desses pés abotinados que mataram judeus inocentes, nojo!”. Um dia, uma amiga minha que não gostava de X, mas gostava de Y, viu as duas conversando. Arquitetou uma agulhada, foi lá e fez: “Y, nossa, você está tão linda hoje; na verdade você é sempre linda”. Para X, nada disse. Depois essa minha amiga me contou a agulhada que tramou – eficaz, pois X ficou com sua cara mediana de tacho sobre pés em sapatinhos delicados – e rimos muito. Devia ser bíblico: “quando uma mulher prejudica outra que é mais bonita ou talentosa que ela só porque inveja essa outra, são justificados os pequenos males perpetrados à invejosa esnobe, pois o Senhor aprecia os serviçais que atuam para antecipar alguns castigos referentes a pequenos pecados, já que não quer ter que se ocupar deles no Juízo Final”. É a justiça itinerante agindo para que ninguém fique impune. 

Minha amiga fez porque tinha motivo, porque sabia da extrema futilidade de X e de sua birra sem fundamento contra Y. Há quem faça de graça, há quem se divirta listando elogios sobre um terceiro que não é estimado pelo interlocutor (só para provocar), há quem goste de falar de corda em casa de enforcado. Parasitas. 


SINDICALISTAS

Eles querem tudo. Quando conseguirem tudo, dobrarão a meta. 

Muitas vezes me envolvi em paralisações e greves porque achava errado que a inflação subisse e meu salário não tivesse reajuste para acompanhá-la. Não me parecia justo que meu poder de compra piorasse em relação ao que eu tinha quando gastei meu primeiro salário na função. Isso (minha vontade de greve) mudou porque estou agora numa das classes mais privilegiadas do funcionalismo público, que recebe um salário mais alto do que merece. Se o país está em crise, não é uma classe privilegiada que deveria ter suas vantagens aumentadas enquanto o resto cai em danação, então não vejo problema em ser um pouco prejudicada com toda a população. Não faço, portanto, greve. Mas minha conduta também mudou porque me afastei do clássico sindicalista parasitário (da vida, do empregador ou do Estado) que está sempre insatisfeito e diz essas coisas que ouvi de fonte primária: 

1. “Esse auxílio-alimentação não dá para a minha família comer no mês, precisamos que seja reajustado. Tenho que gastar do meu salário para alimentar minha família porque o auxílio-alimentação não dá conta.”

2. “Bater ponto na entrada e na saída do trabalho é opressão.” (Dito por sindicalista de categoria que segundo o edital do concurso deveria trabalhar 40h semanais, mas conseguiu que a jornada fosse reduzida para 30h semanais. Ou seja, esse imenso presente não foi suficiente – o sindicalista queria jornada reduzida e sem precisar bater o opressivo ponto.)

3. “Agora querem instalar a ditadura de começarmos a contabilizar certos serviços que fazemos por dia, como número de atendimentos. Eu não tenho que fazer estatística do meu trabalho.”

4. “O servidor público deveria chegar, fazer seu trabalho e ir embora quando terminasse, sem controle de horário.”

5. “O país não anda sem nós. É preciso fazer greve e a sociedade precisa entender nossas reivindicações.”

6. “Para conscientizar minha empregada sobre a greve que faço, eu disse que se não receber aumento salarial não vou mais poder pagar o salário dela, por exemplo.” [grifo meu; Que horas ela volta? (2015) acontecendo na minha cara e do ponto de vista da patroa]

Bom senso é expressão riscada do vocabulário de quem ficou viciado em reivindicar quaisquer direitos que sejam. Os sindicalistas parasitários são os melhores funcionários da instituição? Dificilmente. Exigem muitos direitos, entregam poucos deveres. E nunca, nunca estão satisfeitos. 

(Não me tornei contra greves e paralisações. Tornei-me contra greves e paralisações estúpidas ou absurdamente egoístas. Muitos funcionários públicos que optam pelo “nunca fazer greve, pois é feio” são concurseiros e “esquecem” que se determinadas carreiras são atraentes foi porque grevistas do passado reivindicaram que se tornassem tão atraentes. Os mesmos adeptos do lema empolado também ficam muito animados quando recebem seus reajustes conquistados por grevistas. Nunca ouvi falar que doassem essa parte dos salários aumentados para instituições de caridade.)


URUBU

Há quem nos trate com indiferença, desprezo ou beicinho criançola sem que nada tenhamos feito. É um direito das pessoas não gostarem umas das outras, e sempre me ergui para defender isso. De minha parte sempre tive motivos (e bons) para chegar ao ponto de declarar que não gosto de alguém, mas se existe quem não goste de outros “sem motivos” (sem motivos conscientes e teorizados, frise-se), não há nada de mal desde que não se prejudique o desgostado de graça. Até aí tudo bem. Um dia você quebra a perna quando estava na sala de ginástica dançando “Perfect (Exceeder)” com garbo e a recuperação plena nunca vem; ou seu companheiro some ao sair para comprar cigarros (interessantemente tinha saído para comprar cigarros com uma mala cheia, dois bonés, casacos de frio, o ralador suíço de noz-moscada, as caixas de Tolstói da Cosac e o gameboy); ou sua filha morre de uma doença súbita; ou você foi à falência; ou você deu para ter crises de choro no ambiente de trabalho. Aquele sujeitinho que te tratava com indiferença, desprezo ou beicinho criançola aparecerá, como um urubu, para fazer lambança na sua carniça. Ele não gosta de você, ou você era um mero tanto faz. Mas sua tragédia o move e retira-o da tumba do relacionamento fraco ou nulo que compartilhavam. “Minha esposa também me deixou há cinco anos, sei como é isso.” “O filho de uma amiga também nasceu com deficiência intelectual grave, é uma devoção diária.” “Eu já tive crises no meu outro emprego, tudo o que eu queria era não estar em lugar nenhum, especialmente lá.” É a afeição pela tragédia. Até porque viver tragédias sozinho enquanto outros andam felizes e sem problemas pode ser considerado uma dupla miséria. É raro quem se conforme em estar numa merda particular. 

Na imensa maioria dos casos o urubu é tido como “uma boa pessoa” porque “se preocupa com os problemas dos outros”. O urubu gosta de tristeza, queda, desgraça; sua principal união com seus pares é pela dor, pela doença; mas a fraqueza humana é tão grande que se deixa seduzir por esse personagem que, no fundo ou na superfície (há urubus explícitos que jamais admitiriam se reconhecer nessa descrição), é apaixonado pelas adversidades que acometem terceiros. Ele poderia ser soft, mas costuma ser intenso na trevosidade que engolfa vidas alheias, pois dificilmente consegue manter uma tragédia recém-conhecida para si; geralmente dá uma comentada com outros. A vítima é abraçada, acalentada, “sei o que é passar por isso”, “se precisar de mim, estou aqui, não hesite”, e horas depois o urubu já está fofocando, com deleite interno (jamais admitido), “ah, a Lúcia está assim porque o marido a deixou”, “está arrasado, coitado, recomendei que fosse ao médico e pedisse Prozac”, “não conte para ninguém, mas o filho que ela acabou de ter veio com uma deficiência grave que não tinha sido diagnosticada na gestação”. Ele não só se alimenta da sua carniça como muitas vezes gosta de espalhá-la pelos campos. 

Traga tragédias, ele fará óperas. Traga felicidades e o que receberá será inveja, pequeno asco com um empolado “humpf!” ou desinteresse. Tudo bem, ninguém gosta muito de quem exagera o marketing das próprias alegrias – “Meu deus, como sou feliz! Sou tão feliz! Essa esposa abençoada que acorda sorrindo sem mau hálito, filhos atletas e com boas notas em todas as matérias, um emprego sensacional com um chefe que é o verdadeiro líder servidor de O monge e o executivo, a melhor casa da rua, um cão treinado que sabe dar a descarga, exames de sangue com resultados perfeitos, fezes inodoras! É muita felicidade que não cabe aqui! Portanto não percam a próxima postagem! Amanhã, mais coisas perfeitas! Não esqueçam de curtir e subscrever!” –, mas você apenas comentou no grupo do tricô que seu marido faz mais tarefas domésticas do que você e mesmo assim não é um banana. Os urubus precisavam fazer aquela cara de “Pff, contando vantagem, vamos ver até quando, hehe”? É claro que não. Se tivesse soltado tristemente “Meu marido não faz nada, é um folgado, acho que vou me separar antes que o traia com o ex da minha irmã”, todas pousariam seus tricôs na mesa, deixariam suas sobrancelhas caírem nas beiradas e alisariam suas costas em tom de “oh, pobrezinha, tragam um sorvete de uísque para ela”. 

Nada melhor para conseguir intimidade com seu colega divorciado, que o desdenhava como um adolescente tosco, do que você ter acabado de se separar também. Uau, que sujeito compreensivo com a repentina dor do outro! “Eu o achava arrogante e estranho comigo, mas aí me separei e ele me deu suporte como ninguém.” É claro que deu. Ele é um urubu. Case-se de novo amando muito e sendo muito amado para ver o sorriso amarelo ou o forçado “ai, que bom, fico muito feliz por você” que ele trará. 

Em leve defesa de alguns urubus (só alguns), existe uma parcela ínfima que “não faz por mal” nem que se revolva suas cabeças em busca de um arquivo oculto fedido. São como a personagem Tristeza da animação Divertida mente (Inside out, 2015), que opera em outro ritmo e se compadece com os problemas. Parecem viver na dimensão da dor e quando encontram alguém despencando tentam ajudar com ombro demorado, ouvidos fundos e biscoitos quentinhos. Não são ardilosos; não são calculistas; não são vorazes pelo sangue de virgens; de maneira alguma revelarão as confidências trágicas para terceiros. 

Concedo algum respeito aos meus inimigos. Quando caem no abismo, geralmente não tiro minhas vestes no alto da antena parabólica sob trovoadas gritando e gargalhando “está na vala!, na vala! Nhahaha!”, e também não banco o urubu “oh, haha – digo, oh”. Geralmente. Urubuzar muito pontualmente em casos excepcionais e compreensíveis não faz de mim um urubu, como ninguém se torna fisiculturista erguendo halteres poucas vezes por ano. E não vejo problema em dizer que acho bonito que se dê mal quem é mau. (Está fechado o debate filosófico sobre “o que é ser bom, o que é ser mau”, os polemistas recolham suas mochilas e vão para casa, Jerry, O Varredor já está na porta esperando para trancá-la após a passagem do último papeador. Vamos andando, vamos andando, que o Jerry tem a lição de casa das filhas para corrigir ainda.)


SUPOSTO DIAMANTE À ESPERA DE SER LAPIDADO

Por muitos anos me permiti ser rodeada por companhias parasitárias porque pensava que as pessoas mereciam uma chance de ser melhoradas. “É um misto forte de Urubu, Ronaldo Ésper tácito e Esnobe, mas talvez porque nunca teve a oportunidade de ter uma sincera e sintonizada amizade para compartilhar o que guarda de bom. Isso é algo que posso oferecer.” Acredito que melhorei pessoas? Sem dúvida. Mas nunca a ponto de que viciados no próprio parasitismo deixassem de ser parasitas – em consequência, continuavam me fazendo mais mal do que bem no cálculo do final da semana. Então não perco mais meu tempo. Se um adulto não está pronto para uma relação amigável madura, decente e respeitosa (do ponto de vista da espontaneidade e sinceridade – brincar de Jackass e enlouquecer numa miniDisney do interior não vai ferir nada disso), não é meu papel ter que aturá-lo em sua desgraça ou rio de fel em busca de “aperfeiçoá-lo”. Quem tiver que vir, que venha quase pronto. Venha com inúmeros defeitos – extravagância fora de hora, alcoolismo que ainda não é doença, péssima noção ortográfica, timidez paralisante, crença de que “Pais e filhos” do Legião Urbana é uma boa música, hábito sem noção de falar alto em bibliotecas e hospitais, sincericídio –, mas se é para vir com parasitismos, não venha. 

Uma faceta dentro desse tipo é o “Falso diamante lapidado”: a pessoa é podre, mas você resolveu dar uma chance ao relacionamento porque procurou focar nas poucas “belezas” dela e esteve disposto a trabalhar os defeitos medonhos. Aparentemente você obtém sucesso em transformar um colono preconceituoso e fútil numa pessoa minimamente apresentável, mas eis que chega a roda viva e carrega sua ilusão pra lá, pois: 

1. O sujeito só passou a ser melhor na sua frente; quando você não está “observando”, ele continua achando engraçado debochar de transsexuais com asco, misturar o lixo orgânico com o reciclável, criticar mulheres pelas roupas que usam – “que não correspondem à idade ou ao modelo de corpo” –, usar explicações estapafúrdias para justificar o consumo de carne, valorizar os outros pelo status profissional, rir de piadas sem a mínima graça e criatividade só porque têm como tema pênis e vaginas. 

2. O sujeito melhorou só temporariamente, pois a tendência das personalidades é voltar ao que são; e após duas semanas sendo “alguém melhor” graças a seu falho processo de lapidação, bem, é claro, ele voltou a ser o podre que sempre foi.

Você – José, você gosta do sabor da carne, okay, mas não venha com essa parvoíce de que o leão come a zebra. Leões também estupram leoas e matam os filhotes das novas parceiras, e você não acha que deve fazer isso só porque eles fazem.
José – Tá certo, tá certo, faz sentido. Desculpe. 

[José, um dia depois, ao se encontrar com um churrasqueiro]
Churrasqueiro – Veganismo my ass! Haha! Leões comem zebras, cara, é a natureza. 
José – Pois é! A natureza é cruel! Se o leão come a zebra, por que nós que também somos animais não vamos comer? Haha! Esses veganos são uns zoados na lógica. 

E esse otimismo fajuto daqueles que creem que somos capazes de mudar toda uma pessoa… tsc. Mefistófeles neles: 

“No fim sereis sempre o que sois.
Por mais que os pés sobre altas solas coloqueis, 
E useis perucas de milhões de anéis,
Haveis de ser sempre o que sois.”

Entendo que as pessoas tenham defeitos. O que questiono ao conhecer alguém é: quais defeitos? Porque há defeitos que são indefensáveis. Existem os bons, toleráveis, e os maus, nauseabundos. Gosto de escolher para estimar pessoas imperfeitas que tenham os defeitos corretos. E acredito que nos presídios possa haver gente que, no todo, é mais virtuosa do que muitos cidadãos que vivem enfurnados nas igrejas. Assépticos que repelem pessoas com defeitos manifestos para somente ter ao redor os parasitas igrejeiros, politicamente corretíssimos em público ou limpinhos: montem uma comunidade isolada e não voltem mais. 


VIRA-LATA DESDOBRADO

O complexo de vira-lata todos conhecem: a grama dos outros é sempre mais verde, especialmente se for cultivada em países europeus, em bolsões ricos norte-americanos ou no Japão. Tudo no Brasil é ruim, nada funciona, etc. É de fato problemático este país, mas ouvir quem gosta de fazer novela em vinte e oito mil capítulos sobre os erros brasileiros é para quem é muito paciente, passivo, bocó ou dança a mesma música descontente. Existe, contudo, um desdobramento desse complexo que é pouco comentado: o vira-lata que em seu país mija nas ruas, mas no país melhor dos outros serve-se de toalhinha, aromatizador e canções do Nouvelle Vague enquanto urina num vaso sanitário macio. “Li em O segredo da Dinamarca, da jornalista Helen Russell, que se um dinamarquês vê o vizinho de bairro jogando um item errado nas lixeiras de reciclagem, vai à porta do incauto e reclama.” Bonito, mesmo, e dito por quem no Brasil coloca caixa de papelão na lixeira do lixo orgânico, e em casa mistura latas, restos de macarrão com molho e plástico na mesma sacola. Em suma, o Brasil é um problema e o vira-lata desdobrado que bajula e lambe países de primeiro mundo não é parte da solução para tornar este país, no qual habita, um lugar mais próximo daqueles que inveja. 

Nota da revista Superinteressante número 402, de maio de 2019:

“97% das garrafas plásticas são recicladas na Noruega. Já a taxa mundial fica abaixo de 50%. O motivo? O governo norueguês implantou um sistema de duplo estímulo. O primeiro é para o consumidor. Ele paga uma taxa extra ao comprar qualquer produto embalado em plástico. Mas é como pagar o casco – o governo devolve o dinheiro… se você depositar a garrafa usada em um dos postos de recolhimento automático espalhados pelo país todo. São caixas eletrônicos com um buraco para devolver a garrafa. Já o segundo estímulo é para as empresas que produzem plástico: elas pagam impostos extras pesados por atuar nessa indústria. Mas, se as taxas de reciclagem nacionais ficarem acima de 95%, todas as empresas ficam isentas do imposto.”

Ao terminar de ler, o Vira-lata desdobrado

– Ah, esses noruegueses! Sempre avançados! Os brasileiros nunca conseguirão ser assim, nunca abandonarão essa vidinha de terceiro mundo inculto!

As garrafas dele vão para o lixo comum, mesmo sabendo que na esquina há um posto de reciclagem. Como os vizinhos não reciclam lixo, ele também não recicla. É preciso que esteja na Noruega para sentir a pressão grupal e começar a reciclar só porque se sente arrebanhado. Não podemos contar com ele para melhorar o Brasil, apenas para criticar o Brasil em filas, bancas de jornais e postos de saúde. 

***

NOTAS

1. Para vocês foi fácil ler esta postagem, apesar do comprimento. Mas me tomou muito tempo escrevê-la. Daqui a algumas semanas publicarei a parte II. Logo saio de férias por um mês e não publico nada enquanto viajo.

2. Se não ficou claro: o parasitismo é justificado se aplicado como vingança contra outro parasita que “merece uma lição”. É uma opção válida. Já eu costumo optar por ter o mínimo contato com quem é parasita, sem planejar justiça alguma, pois querer prejudicar esses definhados obriga ao envolvimento e ao sujar de mãos. A vida às vezes se encarrega de fazer as justiças por acaso. Parasitas tendem a ser muito infelizes quando encerrados no próprio interior falido. Que justiça é melhor que isso?

3. A Tribe Called Quest está no meu TOP 3 do Hip Hop. Adoro tanto até a medula que às vezes me dá uma leve dor de estômago ouvir certas músicas. Quem não sente nada, azar.

4. É por ser entusiasta do gênero chamado jornalismo literário que ao ter que optar pela adoção de uma revista semanal escolhi a Época. A Veja tem artigos na linha, mas em menor intensidade. A IstoÉ considero uma piada no que diz respeito a inteligência e bom gosto – o que explica que se orgulhe de ter em seu quadro de colunistas um nanico intelectual como Rodrigo Constantino. E a Carta Capital, beh, adota posições tão canalhamente indefensáveis que, mesmo se gostasse de seu estilo, eu não poderia gastar tempo de vida para me irritar com ela semanalmente.

5. Existe o filme italiano Perfetti sconosciuti (2016, sem título em português). Três casais de amigos e mais um amigo solteiro se reúnem para jantar e decidem fazer um jogo: colocam no meio da mesa os celulares, e tudo que aparecer na tela durante o jantar terá que ser compartilhado para o grupo. O argumento é ótimo, atual e instigante: quase todos da mesa têm coisas a esconder e as revelações geram conflitos. A Netflix fez uma versão da história – Nada a esconder (Le jeu, 2018), com elenco francês –, mas a melhor versão mesmo, na minha opinião, é a espanhola Perfeitos desconhecidos (Perfectos desconocidos, 2017), que também está no catálogo da Netflix. A questão com as versões é que muitas pessoas tendem a dar menos créditos a elas (comparem as notas dos três filmes no IMDb), mas é perfeitamente possível que uma versão saia melhor que a obra original. No filme italiano, uma história que começa levemente engraçada se encaminha para um drama melancólico e silencioso que deixou o tom da trama muito piegas. A versão francesa fica no meio em qualidade. A versão espanhola ganha não só porque é excitante o agito espanhol no espírito dos personagens, mas porque usou muito melhor a comédia e depois o drama para ritmar a história. Como a ideia de que três casais e um solteiro têm diversos segredos a esconder em seus celulares é inverossímil, o texto ficou melhor na de certa forma exagerada leitura espanhola.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

A morte da PTS



The Economist previu 2019 como o ano do veganismo, e de fato: nunca foi tão fácil ser vegano, apesar de a revolução ainda ter como metade do fundamento um mercado natureba de comidas difíceis de engolir. Já experimentei opções que pareciam alpiste, farelo para galinhas, gororobas para sedentários deprimidos sem asseio e sem critério, lanches que foram recusados até por cães. Fui para casa e fiquei com os tradicionais pratos que nunca pediram um pedaço de bicho para serem bons, mas continuei arriscando colocar meu nariz para fora da janela tentando sentir se empreendedores verdes conseguiriam dar algumas dentro. Às vezes deram. 

Há não tantos anos assim, um vegano poderia se considerar sortudo quando planejasse visitar um amigo que já fosse declarando “vou fazer algo para você, não se preocupe”. Ao chegar à festa, o prato era PTS (proteína texturizada de soja, que é a soja numa de suas piores formas nutritivas e de sabor) com alguma outra coisa, como o enjoativo creme de soja da Batavo ou macarrão para simular uma macarronada à bolonhesa, que não existe em Bologna nem na forma como a conhecemos. Era na mesma época na qual se você entrasse num grupo e declarasse que era vegano (causa), em cinco segundos alguém já estaria falando sobre “carne de soja” (consequência). Hoje não há só boas coxinhas de jaca (nem sempre, è vero, mas muitas vezes) e sobremesas respeitáveis, mas assistimos a uma ascensão da tal comida de laboratório que já está mudando o cenário alimentar nos países onde é comercializada. A americana Beyond Meat fez hambúrgueres e salsichas (tipo a wurst alemã) muito realistas a partir de componentes tirados de plantas e grãos. A também americana Just, Inc. pretende vender carne de laboratório – sem ser um patchwork de plantas, mas alimentando células animais in vitro para desenvolver carne “de verdade” sem precisar matar ninguém – até o final de 2019. A Unilever tem comprado uma porção de marcas veganas e semiveganas, e também feito versões veganas de alguns produtos tradicionais de seu império, como a já comercializada Hellmann's vegana. Em poucas semanas São Paulo deve receber em alguns restaurantes seu primeiro hambúrguer feito em laboratório ao estilo Beyond Meat sob a marca Behind The Foods, de um publicitário que se tornou vegano em 2016, conheceu as carnes falsas quase verdadeiras nos EUA e resolveu investir numa tendência mundial para a qual existe grande demanda no Brasil. Se o interesse cresce por preocupações éticas, por causa de reportagens no Fantástico ou porque Anitta e Xuxa se tornaram veganas, o mercado capta o anseio e lança opções. Fico pensando o que Ian MacKaye, que se tornou vegano antes de todos nós quando não existiam muitas alternativas fora do hortifrúti e da cozinha caseira, acha desse vento favorável. Eu considero um salto que está prestes a separar os trogloditas completos dos meramente acomodados. 

Vamos vendo. 

Aos que tentam salvar a própria ignorância com fajutices argumentativas e já iam erguendo o dedo para decretar que “carne de laboratório não é natural”, vale lembrar que nem o hippie mais sessentista consegue levar uma vida natural, que os remédios alopáticos que vocês tomam para qualquer dor nas costas não são naturais, que tratamentos para que crianças com deficiência se desenvolvam melhor não são naturais (na natureza, os animais abandonam ou matam as crias deficientes porque elas são consideradas um fracasso biológico), que inseminação artificial, ora, não é natural, que enxugar louça não é natural. Se estamos vivendo com milhares de coisas não naturais no cotidiano, não há motivo para não inserir mais uma aí, cuja nobre adoção gera menos sofrimento para seres sencientes que merecem ter seus interesses levados em consideração por quem resolveu participar de certa ideia de civilização. 

*** 

NOTAS 

1. Se fazem macarrão à bolonhesa de uma forma diferente da que se faz em Bologna, certo, é uma curiosidade, mas a única gravidade aqui é o animal ralado. Há quem viaje e volte viciado nesse tipo de correção “não-é-tal-como-conhecemos-o-costume-de-lá”. Não me convidem para essas conversas enfadonhas. Na dúvida, não me convidem para conversas. Nunca me arrependi de não ter embarcado num papo furado. 

2. Escrevi “lanches”, mas não gosto dessa palavra. 

3. Esses tempos estive no Chile aberto a importações e já estavam vendendo Beyond Meat e Beyond Sausage lá. Trouxe uma bolsa térmica cheia deles para cá. 

4. Não fiquei sem escrever por falta de assunto ou de textos em andamento, mas porque gerir uma casa “informacional” é um trabalho enorme. Meu namorado e eu organizamos livros, músicas, artigos interessantes de revistas (as revistas só vão para o lixo após escaneados os artigos selecionados), filmes, discos. Isso toma tempo. Optamos por comer em casa na maioria das vezes e cuidarmos, nós mesmos, dos afazeres domésticos. Voltei a fazer faculdade pelo correio. Estudo dez minutos de italiano por dia (em vinte anos estabelecerei diálogo com os nativos, não tenho pressa). Ou seja, basta fazer a matemática para entender por que nem sempre consigo manter uma regularidade nesse quarto bizarro que é o meu blog. Mas até a Páscoa postarei parte do Tratado de parasitologia humana, ou Compilado de parasitologia humana. Fui escrevendo um tanto num mês, escrevendo outro tanto no outro, quando vi já tinha vinte páginas (ainda crescendo), então terei que dividir o texto em três ou quatro partes. Mais uma postagem categorizando as misérias humanas? Sem dúvida. Não sejam dramáticos sobre a “negatividade” ou o “não vê o lado bom das pessoas” (é preciso fazer estudos e cálculos para achar o ângulo de onde se vê esse lado). Se o chapéu não servir, apenas se entretenham, já que fizeram questão de vir me ver. Un bacio per voi

5. Gata preta, gato branco (Crna macka, beli macor, 1998), filme do Emir Kusturica, está no meu top 20 (apesar do mau tratamento que muitos animais recebem no longa). A música que encabeça essa postagem está na trilha. O Die Antwoord fez uma boa versão dela, mas não chega aos joelhos da original, que é alucinada, old school e noturna. 

6. Eu ia reclamar do governo um pouquinho, mas sei que começo pensando “só uma linha” e termino num discurso virulento em que chamo, salivando, de “burros” todos os que votaram no Bolsonaro, contemporizaram Bolsonaro ou defenderam uma bundona isenção. Perco o respeito, desço dos meus chinelos e tenho que me segurar para não sair de casa às duas da manhã à procura de um bolsonarista para bater (“para deixar de ser burro!”). Viro hooligan

7. Recomendações do instante. Livro: Noites lebloninas, do João Ubaldo Ribeiro, que me conquistou e amoleceu. TV: a série documental Hip hop evolution (2016-), da Netflix, para quem gosta de no mínimo algum braço do hip hop ou aprecia história de gêneros musicais. 

8. Costumo falar sobre “livros para ler em uma sentada”, mas em casa quase só leio livros deitada. O livro do João Ubaldo citado na nota anterior é para ler em uma deitada.