sábado, 17 de outubro de 2020

Liberais empolgados com a aprovação de Bolsonaro pelo povo; e anúncio da série “Radical do movimento negro”


Escrito ao som de Visonia, "Beyond the clouds", e outras coisas

Na parte III do Compilado de parasitologia humana antecipei o assunto dos radicais do movimento negro, mas tratei principalmente dos tipos bolsonaristas: os fiéis, os que fazem acrobacias para defender seu voto numa aberração, os contemporizadores. Dentre os contemporizadores estão sujeitos falastrões sobre qualquer assunto tornado tendência nos jornais e nas redes sociais, mas que estranhamente não falam nada ou quase nada contra Bolsonaro. Quando cobrados, eles se abrigam sob o telhado do cinismo: “falo sobre o que eu quero, não tenho que falar sobre isso”. Não tem, realmente. Mas faz sentido perguntarmos por que o papagaio opinante se omite sobre questão que afeta todo o redor da sua gaiola. Por que está calado se diante de temas bem menores não fecha o bico? Bolsonaro é grosseiro, despreparado, ignorante, preguiçoso, inapto, autoritário, defensor da tortura, defensor da execução, corrupto, megalomaníaco, apaixonado pela destruição (de pessoas, instituições, valores, florestas e projetos) – e só não deu um autogolpe porque não conseguiu o apoio de que precisava para a empreitada. Bolsonaro rebaixa o parâmetro de qualidade da presidência: quase qualquer coisa que entrar depois dele será melhor que ele, e isso é má notícia. Bolsonaro mentiu a maior parte do seu programa de campanha e quem acreditou que ele melhoraria o país estava sofrendo de um apagão no raciocínio ou aceitava apoiar um fascista. Mas os contemporizadores fingem que ele não existe, que não é um problema tão grave, que é melhor do que qualquer esquerdista no poder. 

Em 14 de agosto o Datafolha publicou uma pesquisa a dizer que “aprovação de Bolsonaro cresce e é a mais alta desde início do mandato”. Havia meses as notícias sobre política na Folha de S.Paulo não recebiam comentários das hordas de bolsonaristas – os professores da rede pública com assinatura gratuita puderam se destacar defendendo esquerdices –, mas a pesquisa do Datafolha conseguiu reanimá-los nos esgotos e agora eles estão de volta apoiando barbaridades, violência e até corrupção (Lula não pode ter sítio mal explicado, mas membros da família Bolsonaro podem ter imóveis comprados com dinheiro vivo). 

A novidade é que além desses broncos a pesquisa do Datafolha animou muitos “liberais”. Vi no mínimo três deles escrevendo textões e tweets com centenas de curtidas sobre a humilhação que o resultado oferecia à esquerda. “É, esquerda, parece que o povo não quer suas ideias”, disseram. É má-fé, ignorância ou ingenuidade (irmã da ignorância)? De fato o povo não quer os principais projetos da esquerda, mas desde quando o povo quer os principais projetos dos liberais? E debaixo de que pedra vivem esses senhores para achar que a aprovação de Bolsonaro pelo povo se deve prioritariamente a uma rejeição aos projetos da esquerda? Que análise rasa foi realizada para estabelecer essa causalidade tão categórica “se o povo aprova Bolsonaro, só pode ser porque abomina a esquerda”? A pressa é inimiga da ponderação. As pesquisas saíram num dia e no mesmo dia alguns sabichões liberais já tinham explicações para os anseios do povo em manter Bolsonaro no poder: uma suposta “negação da esquerda”. 

O povo brasileiro era muito abençoado pela esquerda quando mantinha o PT no poder por 13 anos. Esse mesmo povo – mal-educado, inculto, motivado por modas, assistencialismo e culto à personalidade – de repente é querido por uma parte da direita liberal quando não apenas não vota num candidato de esquerda como apoia o incompetente Bolsonaro. O povo que num momento é “a voz de Deus” passa rapidamente para “a voz dos fascistas”, segundo esquerdistas, e “gente antenada que pensa de forma prática contra a esquerda”, segundo alguns liberais. Não conhecem o povo ou não sabem enxergar coisas que estão a um palmo do nariz, e aí é claro que terão que rebolar para dar explicações rápidas – e fáceis – toda vez que essa população não agir conforme seus desejos de causalidade simplória esperavam. Acham-se especialistas entendendo as moções do povo quando ele aprova um candidato “do seu lado”, mas ficam espantados com uma ignorância de séculos demonstrada ostensivamente quando as mesmas gentes votam com paixão em alguém “do outro lado”. 

Não romantizem a percepção ou a “sabedoria prática” do povo, pois ele não vota nesses termos. Esse povo que decide eleição enquanto intelectuais teorizam nas academias e polemistas ensimesmados desenrolam fios no Twitter: ele não vota em bons projetos fundamentados, não sabe a diferença entre esquerda e direita, acredita em correntes de Whatsapp, compartilha fake news descarada, deixa-se levar por campanhas que fazem produções cinematográficas para convencer o eleitor, simpatiza com figuras da política por motivos idiotas, segue ondas, vende o voto por aperto de mão e cesta básica, pensa que o auxílio emergencial de 600 reais garantido pelo Congresso foi dado pelo misericordioso Presidente, mantém notórios corruptos no poder por décadas. Achar que a aprovação de Bolsonaro pela massa votante se deve a uma reflexão contra os radicalismos do movimento negro, as feministas da quarta onda, o Estado inchado e “as ameaças do socialismo” – como se o povo soubesse o que é socialismo – é tolice e despreparo analítico. 

Liberais deveriam chorar no travesseiro ao ver que Bolsonaro é apoiado pelo povo. Um liberal que acha algo positivo o resultado dessa pesquisa do Datafolha precisa ver se sua posição política e econômica é de fato liberal ou se deve ser chamada de meramente antiesquerda. Se um liberal de calças curtas está aceitando qualquer coisa “antiesquerda” mesmo que essa coisa também seja muito anti-liberal – e mesmo que a ascensão dessa coisa signifique a impossibilidade de eleição do Amoêdo –, pode ser o momento de ele rever a autodenominação equivocada. Sua igreja é outra. Vá viver sua fé fanática com mais honestidade enquanto carrega o lema rasteiro “inimigo do meu inimigo é meu amigo”. 

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Andei escrevendo e escrevendo para uma tal parte IV do Compilado de parasitologia humana que seria sobre os radicais do movimento negro, mas o texto cresceu de tal forma por causa da inserção de subtítulos e historietas que esta semana ele estava alcançando 50 páginas – e crescendo. A pergunta é: quem lê texto de blog que equivale a 50 páginas? Desconheço. Fiz até um sumário com os subtítulos para os leitores que quisessem ler o texto todo (mas de forma picada) ou para aqueles que quisessem ler somente os assuntos que despertassem interesse pessoal. Mesmo assim, não achei uma boa estratégia: havia grande chance de alguém começar a ler, ficar cansado, pensar “volto depois para o restante” e esquecer. A expectativa de um textão na internet que parece a reprodução de um livro de bolso muitas vezes desanima a vontade de começar a encará-lo, e também pode gerar xingamentos gratuitos (vezeiros no mundo virtual, que é realíssimo) como “quem é você na fila do pão para achar que pode escrever coisas dessa envergadura e que as pessoas vão ler?”. 

Esses dias, lavando louça, veio à minha mente uma ideia melhor: fazer uma série apenas sobre os radicais do movimento negro. Deste modo publico vários textos com assuntos mais específicos e comprimento mais amigável para uma plateia talvez acostumada às leituras fragmentárias do Twitter ou à rapidez das reportagens/colunas dos jornais. Aquilo que na postagem original seriam subtítulos agora serão títulos de postagens completas. Dividir para conquistar. 

Publicarei cada parte da série aproximadamente uma vez por semana (começarei daqui a duas semanas) e criarei a tag “SÉRIE RADICAIS DO MOVIMENTO NEGRO” para ficar mais fácil acompanhar postagens perdidas. 

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No canto direito da parte superior da página é possível cadastrar seu e-mail para subscrever este blog a fim de receber aviso sobre novas postagens, o que pode ser útil, já que não tenho uma regularidade para publicação. [Atualização: infelizmente esse recurso não está funcionando como o esperado. Às vezes o Feed envia e-mail avisando de novas postagens, às vezes não envia.] Mas tentarei ser disciplinada no caso da série sobre os radicais do movimento negro, e pretendo publicar um texto por semana – pois ao mesmo tempo em que anseio me enroscar nesse assunto e desdobrá-lo, quero também me livrar logo dele para escrever sobre amenidades. Tendo trabalhado neste blog só sobre a angústia, a forma que tenho encontrado de dar algum tom mais suave aos textos que venho escrevendo é inserindo uma gracinha, recomendando músicas, falando rapidamente sobre um desenho animado. Estou bem ciente de que o acachapante aqui, entretanto, é uma espécie de trevas à noite no subterrâneo que se alcança pelo ralo de uma fábrica de chucrute. Só que, ei, se você está lendo é porque você está querendo ler, ninguém está apontando uma arma para sua cabeça. (Está? Pisque duas vezes em caso positivo.) 

Então até logo. 

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NOTAS (maiores que a postagem, realmente, e por que não?) 

1. Visonia é um projeto do chileno Nicolas Estany, que hoje mora em Varsóvia, na Polônia. Se não me engano, conheci por acaso dando chance a playlists de música eletrônica no Spotify. Essas playlists testadas no escuro já me deram o prazer de conhecer muitas coisas boas e de diversos gêneros. Como a Netflix, o Spotify peca por não ter uma grande seleção alternativa/underground, mas o custo-benefício de assinar ainda é excelente. 

2. Liberais dizem que socialistas/comunistas negam a natureza humana com suas teorias que parecem supor um homem virtuoso inventado. E esses liberais não fazem a mesma coisa? Parece-me também uma negação da natureza humana achar que uma civilização ótima, “a melhor de todas”, será erguida sobre regras mínimas e lemas fisiocratas. Muitas das conquistas que alcançamos enquanto sociedade evoluída se deveram a pessoas que decidiram meter o pé para frear a roda de tantas “liberdades econômicas”. 

2.1. Também há negação da natureza humana quando dizem que numa sociedade economicamente liberal “as pessoas vão se voluntariar para ajudar os necessitados, como hoje faz Bill Gates”. Evidências anedóticas de filantropia no mundo rico não são prova de que “a filantropia está dentro nós, basta que o Estado saia de cena para que ela aflore”. E como mostram alguns estudos, nosso impulso caritativo é falho e às vezes direcionado de modo pouco eficaz: pessoas que não dão 5 reais para ajudar uma comunidade de centenas que está passando fome são as mesmas que podem querer doar 50 se você pedir dinheiro para uma criança faminta específica apresentada na TV com nome, história e música emotiva de fundo. Ou seja, até para incentivar os outros à caridade você precisa ter conhecimentos apelativos da área da publicidade. É com esses irracionais que os necessitados terão de contar num mundo liberal? 

2.2. São engraçados alguns liberais. Gostam muito daquela citação de Adam Smith sobre o egoísmo salutar do padeiro, do cervejeiro e do açougueiro – que prestariam importantes serviços à sociedade motivados pelos próprios interesses –, e também se amarram no monólogo motivacional do personagem de Alec Baldwin (Blake) em O sucesso a qualquer preço (Glengarry Glen Ross, 1992), mas, por outro lado, creem que a bondade humana espontânea ajudará pessoas em situação de miséria num mundo liberal que não eliminou a pobreza. É com isso que contam quando tentam nos vender a ideia da utopia liberal como um paraíso. 

2.3. A esquerda, que não aceita ficar por baixo na patetice, leva a ferro e fogo as premissas dos filmes de Ken Loach e acredita que as pessoas pobres são todas coitadas massacradas pelos barões das grandes empresas. O pobre de Ken Loach é sempre um bom selvagem que é vítima do capitalismo selvagem. 

2.4. Geralmente sei separar arte de ativismo dramático. Gosto dos filmes do Ken Loach, apesar do que disse na nota anterior. 

2.5. Mas os liberais se erguem no ringue e dizem, sem corar, que se hoje Oprah Winfrey – mulher, negra, de origem pobre – é uma das mulheres mais ricas do mundo graças a seu esforço, qualquer mulher negra de origem pobre poderia fazer o mesmo. “Basta querer.” Vi um liberal inteligente e ponderado defendendo em longo texto que a superadora Oprah seria a prova do poder da força de vontade. Uma exceção. Todos estamos sujeitos a ter apagões no bom senso. Esse liberal, que faz muito mais bem do que mal às ideias que circulam na internet, não merece ser achincalhado por isso. 

3. Liberais e socialistas gostam de usar o povo brasileiro convenientemente, ignorando a extrema maleabilidade ilógica desse povo, mas não só. A Suécia também é usada dessa forma pelos dois lados. É um país rico, culto, bonito e feliz. Liberais atribuem o sucesso da Suécia a seu livre mercado, socialistas atribuem a seu forte Estado de bem-estar social. Quem está certo? Ao que parece, ambos os fanáticos mergulhados em suas utopias. A Suécia consegue dar certo com as duas coisas: facilidade para fazer negócios e proteção estatal dos desfavorecidos. 

Especulo que o segredo é cultural. Na cultura sueca, políticos são geralmente honestos e modestos, as pessoas confiam umas nas outras (porque sabem que podem confiar), são poucos os que usam malandragem para se beneficiar do Estado e dos seus pares. Um grande erro, que também já cometi, é olharmos para países de sucesso geral, escolhermos determinados pontos deles e acharmos que podemos colocar esses pontos dentro do nosso país – e que aqui eles dariam certo como lá. Isso é, na verdade, quase como pegar uma espécie animal que está muito bem-adaptada num local e levá-la sem ponderação para outro lugar: tende a não funcionar se outros fatores não forem considerados. O esquerdista que olha para a Suécia e pensa que devemos copiar seu Estado de bem-estar social esquece de observar como é a cultura (educação familiar, educação formal e caráter) do nosso povo. O liberal que olha para a Suécia e só vê livre mercado esquece de conversar com uma população que, em sua maioria, apoia o amparo estatal dos necessitados e sente orgulho de pagar os altos impostos que paga. 

Na Suécia os impostos que o povo paga são bem alocados em benefício de todos. Ou seja, parece que lá a cultura é propícia à arrecadação de impostos. Enquanto isso, no Brasil, não existe edição do programa Fantástico que não tenha no mínimo uma reportagem sobre corrupção, e o padrão é que os desvios sejam da ordem dos milhões de reais. Nossa cultura não é, no geral, adequada para que entreguemos dinheiro nas mãos de políticos e maus administradores. 

Para sair do fanatismo liberal e do fanatismo socialista que negam a natureza humana (no bem ou no mal) e exigem uma sociedade purista conforme suas teorias radicais, a melhor definição que encontrei veio do livro Economia: modo de usar – um guia básico dos principais conceitos econômicos, do economista coreano Ha-Joon Chang: 

“A história é útil para realçar os limites da teoria econômica. A vida é muitas vezes mais estranha que a ficção, e a história apresenta muitas experiências econômicas bem-sucedidas (em todos os níveis – países, empresas, indivíduos) que não podem ser perfeitamente explicadas por uma teoria econômica. Por exemplo, se você lê apenas publicações como The Economist ou The Wall Street Journal, só vai ouvir da política de comércio livre de Cingapura e de sua boa acolhida ao investimento estrangeiro. Isso pode fazê-lo concluir que o sucesso econômico de Cingapura prova que o livre-comércio e o livre mercado são os melhores sistemas para o desenvolvimento econômico – até que você fica sabendo que a quase totalidade das terras em Cingapura pertence ao governo, 85% da moradia é fornecida por uma agência governamental (o Conselho de Desenvolvimento Habitacional) e 22% da produção nacional vem de empresas estatais (a média internacional é cerca de 10%). Não há nenhuma teoria econômica – seja neoclássica, marxista, keynesiana, ou o que for – capaz de explicar o sucesso dessa combinação de livre mercado e socialismo. Exemplos como esse devem tornar o leitor mais cético sobre o poder das teorias econômicas e mais cauteloso em tirar conclusões de medidas práticas a partir delas.” (grifos meus) 

Discordo de alguns apontamentos opinativos que Ha-Joon Chang faz em seus livros, mas este trecho é perfeito e está no capítulo em que ele dá outros exemplos de países funcionais ou disfuncionais que desmistificam a pureza que liberais e socialistas demandam para as suas visões de mundo. Pretendo voltar ao autor quando tratar, num futuro distante, de utopias políticas e econômicas. 

4. A Suécia, com sua cultura de modéstia, honestidade, solicitude e lagom, parece muito mais adequada que o Brasil para o estabelecimento de um forte funcionalismo público. Aqui metade dos serviços públicos são mal prestados, uns trabalham muito para que outros façam o mínimo (e os que trabalham o mínimo tentam superestimar o próprio trabalhinho), aquele que depende desse serviço tem que contar com a sorte de ser atendido por alguém com boa vontade, crimes graves acontecem nas repartições e nenhuma penalidade é aplicada aos criminosos (no máximo são transferidos), a avaliação dos servidores não funciona e péssimos funcionários passam com tranquilidade no estágio probatório. A Suécia também é melhor que o Brasil na manutenção de políticos, como mostra o livro Um país sem excelências e mordomias, da jornalista Claudia Wallin. Lá os políticos utilizam transporte público, andam de bicicleta, têm o mesmo padrão de vida que a maioria da população. No Brasil desonesto, malandro, atrasado e preguiçoso, a política é carreira de negócios, nossos “representantes” passam anos sem aprovar nenhum projeto (alguns, quando aprovam, é aquilo: “criar o dia da onça-pintada”, “criar o dia do eletricista”), a roubalheira é a regra, não a exceção. Não sou favorável ao Estado mínimo, mas um país assim precisa, de fato, de menos Estado e de uma virada fiscalizatória no Estado. 

5. Como bem diz Ha-Joon Chang no livro 23 coisas que não nos contaram sobre o capitalismo, se liberais defenderem maior fluxo migratório entre países com a finalidade de proporcionar maior liberdade econômica, é possível que em muitos países ricos os trabalhadores percam seus postos de trabalho para imigrantes que trabalhariam por muito menos – e para entregar o mesmo serviço. Como o liberalismo pleno, que poderia corrigir alguma parte dessas disparidades, está muito distante – provavelmente nunca vai chegar –, ficamos nessa situação de que alguns empregos estão precarizados porque há quem aceite receber mixaria por eles. 

5.1. Mas antes que um esquerdista diga “ahá!”, pense no seguinte: certos empregos medianos, se melhorados em salário à força, simplesmente deixarão de existir. No Brasil qualquer um que ganha 3 mil reais por mês tem diarista. Na Suécia quase ninguém tem diarista, todo mundo faz o próprio serviço doméstico. Quando você fala para um sueco que no Brasil é comum que as pessoas tenham diaristas e empregados, ele fica surpreso, pois no país dele esse serviço é caro. Pergunto: se um grande grupo de diaristas brasileiras for à Suécia e cobrar 25% do que as poucas diaristas de lá cobram por esse serviço, será que os suecos começarão a utilizar mais esse tipo de serviço? Suecos têm a cultura do DIY (do it yourself), mas parte disso não se deveria ao fato de prestadores de serviços domésticos serem caros? 

5.2. Alguns esquerdistas têm demonizado a profissão de diarista/empregada doméstica no Brasil, alegando que ela é fruto de uma sociedade profundamente classista e racista. Também parecem manifestar algum desprezo pelas famílias que utilizam com frequência esse tipo de serviço. O que desejam? Acabar com essa profissão? Fazer com que a classe média despache suas diaristas e passe a limpar as próprias casas? Mas vocês já conversaram com as mulheres que dependem das colocações como diarista e empregada doméstica, hoje, para saber o que elas pensam do assunto, ou aqui esse tipo de “vivência” não conta? Certos liberais pensam que é melhor alguém ter o pior emprego possível a não ter emprego nenhum (e que não é papel de ninguém reivindicar melhoria de condições trabalhistas coletivas que tornem o legislado superior ao negociado), certos esquerdistas pensam que é melhor alguém não ter emprego nenhum a ter um emprego mais ou menos – mas depois vão cobrar “do sistema” a falta de emprego para as pessoas pobres. 

5.3. Esquerdistas que são contra Uber e iFood porque os consideram danosos ao trabalhador, mas utilizam esses serviços: vocês podem aumentar as gorjetas que dão aos funcionários dessas plataformas que os atendem. Parece piada, mas é grande a quantidade de esquerdistas avarentos que não ajudam ninguém com dinheiro do próprio bolso e querem que o Estado resolva tudo. Há coisas para o Estado resolver, claro, mas contribua fazendo com que sua ação seja condizente com seu discurso. Vocês não são contrários à desigualdade? Compartilhem mais seus bens com quem está em situação pior que a de vocês. Abram mais essas mãos. 

6. O liberal que diz que “todo emprego precário é melhor que emprego nenhum” chegaria a um operário adolescente da época Revolução Industrial, que trabalhava até 16 horas por dia, para dizer “é melhor esse emprego do que nenhum emprego”? Existe limite para o “emprego ruim é melhor que estar sem emprego” ou há um momento em que mesmo os liberais dizem “espera um pouco, acho que aqui as coisas começam a se tornar exploratórias e injustamente desiguais”? 

7. Liberais dizem que “o salário-mínimo é ruim porque deixa as pessoas pobres sem emprego, já que o Estado não permite que empresas as contratem para receber menos que o mínimo”. São os mesmos que são favoráveis à abolição do SUS para dar lugar à escolha privada de médicos e planos de saúde? Mas se no mundo liberal algumas pessoas devem “ter o direito” de receber menos que o salário-mínimo, que plano privado de saúde essas pessoas poderão pagar ganhando mixaria? O que os liberais teriam a dizer para esses trabalhadores que ganhariam 300 reais por mês e, assim, não teriam nenhuma condição de pagar um médico particular ou um plano de saúde para uma consulta básica? “Eles que lutem”? Temos muito a aprender com os liberais, mas lendo seus adeptos fanáticos e puristas parece que estamos lendo defensores de um tipo de darwinismo econômico. Ou de fato defendem que parte da população não tenha acesso a cuidados de saúde (nesta sociedade sem SUS e com salários de poucas centenas de reais), ou vivem aquela utopia de que “tudo vai se ajeitar por si só”. Temos que diferenciar esses dois tipos de liberais. O primeiro é pérfido, o segundo é um sonhador. 

8. Liberais que dizem que a CLT é ruim dando como prova sua origem na Carta del Lavoro de Mussolini: não parecem esses identitários que querem abolir as palavras por causa de etimologias supostamente negativas que ninguém conhece? Quer desgostar da CLT do cabo ao rabo, desgoste, a ignorância é sua, mas evite essa falácia da “origem” quando o filho não tem nada a ver com os crimes do pai. 

9. Por que Mises faz mais sucesso que Milton Friedman no Brasil? Porque é menos razoável, mais rancoroso e “joga pra galera”. Seu livro A mentalidade anticapitalista parece escrito por um rebelde pedante de 15 anos que simplifica o que deveria ser tratado com mais elaboração e que insiste, do início ao fim, em pôr na conta da “inveja” e do “ressentimento” as reivindicações esquerdistas. Assim Mises fecha o tema, porque qualquer coisa que esquerdistas digam contra projetos liberais – e contra o capitalismo – será “por causa da inveja”. Não que esses sentimentos não estejam muito presentes nos discursos de certos esquerdistas, mas deveríamos esperar mais profundidade de um teórico que move nossos jovens. (Talvez os mova justamente por causa dessa fuleiragem.) Mises não apenas cita a inveja: ele tem obsessão nela como explicação para qualquer esquerdismo. A mentalidade anticapitalista, que é referência para muitos, é um panfleto ruim, mal escrito (além de mal revisado pela Vide Editorial) e moleque. Até Marx escreveu um panfleto melhor. 

10. E o pior de Milton Friedman? As explicações furadas sobre como seriam as proteções ambientais num modelo de sociedade liberal. 

11. “Arma na cabeça” é um jogo que faço com meu namorado e com colegas para colocar duas opções extremas diante deles e obrigá-los a escolher. É um joguinho bobo, mas revelador ao nos forçar a graduar os males de duas opções. “Tem uma arma na sua cabeça: Russomano ou Boulos para a prefeitura de São Paulo?” OK, Boulos. “Tem uma arma na sua cabeça: Bolsonaro ou Weintraub para Presidente?” Pode atirar. Mentira, quando meu namorado me desafiou nisso escolhi Weintraub porque pesei a seu favor o fato de não ter filhos na política e não ter tido longa carreira política. Não me julguem. A situação é extrema, o jogo obriga a escolher e pensem que se eu escolhesse Bolsonaro vocês também me julgariam. Aprendam a brincar e tenham bom senso. A graça do jogo é justamente ter que escolher entre duas coisas abomináveis (Bolsonaro e Weintraub, por exemplo). 

11.1. “Arma na cabeça” não dá certo com gente sem graça que não embarca em brincadeiras e vai falar “nenhum dos dois” para todos os desafios. Não consegue imaginar a pressão da arma na cabeça obrigando a escolher e lança um balde de água fria em quem quer animar a festinha com jogos polêmicos. Provavelmente é alguém que está bebendo Coca-Cola diet, gosta de conversar por horas sobre tesouro direto, vê jogo de futebol com a emoção de quem espera o ônibus enquanto assiste a um caramujo atravessando a rua e opina que Sambô “tem o seu valor”. 

11.2. Sambô é o grupo de farofeiros que transformou aquela música do U2 sobre o episódio do Domingo Sangrento na Irlanda do Norte num pagode cheio de alegria, sedução e aura “só no sapatinho”. Isso é de conhecimento generalizado. Mas recentemente descobri que eles também limparam seus intestinos em cima da música “Você abusou”, de Antônio Carlos e Jocáfi, conhecida na interpretação melancólica e dolorida de Maria Creuza. Agora toda vez que ouvimos essa linda música aqui em casa também lembramos do equívoco, da desgraça e da falta de vergonha na cara da versão do Sambô. 

12. Em 15 de outubro fez 80 anos que o filme O grande ditador (The great dictator, 1940), de Charlie Chaplin, estreou no cinema de Nova York. Esta reportagem da Deutsche Welle, na Folha, conta um pouco da produção do primeiro longa falado de Chaplin. Sempre tive dificuldade de eleger meus filmes favoritos, mas há um tempo venho trabalhando nisso e consegui chegar a algumas conclusões. E O grande ditador está entre meus filmes favoritos. 

13. A melhor seleção de filmes que conheço em plataforma de streaming é a do Telecine, que, aliás, tem um ótimo aplicativo para a TV. Há vários filmes de Ingmar Bergman, Hitchcock, Fellini, além de muitos filmes de cinema alternativo. Achei incrível a quantidade de filmes iranianos que estão disponíveis para ver imediatamente com imagem de qualidade e boas legendas. Recomendo. E O grande ditador também está lá.