sábado, 8 de dezembro de 2018

Notas sobre lugares, pessoas e hábitos: as comidas, as bebidas e outras coisas


Escrito ao som de Public Image Limited, “Open and revolving” e “Fat chance hotel” 

Dizem que é preciso comer certos alimentos vinte vezes até que o paladar aprenda a apreciá-los. Na minha última visita a Ilha Solteira (São Paulo, mas quase Mato Grosso do Sul) devo ter comido rúcula pela vigésima vez ao colocá-la banhada em azeite, sal e limão no meio de um pão francês, porque de repente meu paladar se abriu e senti encantos pela mistura. Não ocorrerá o mesmo com o coentro, porque contratei degustadores particulares para me impedir dessa intoxicação de comer qualquer coisa que tenha coentro: não chegarei a vinte vezes com esse estranho vegetal. Meus detratores que tentam me presentear com esse veneno já estão avisados. Causarão a doença das pessoas erradas, de inocentes. Bolem outro plano. 


Nos cardápios europeus (o bufê comum no Brasil é raro lá fora) há pratos que vêm nomeados com detalhes, mas a salada às vezes é aquilo genérico como o simples “rock” que não esclarece coisa alguma: “salada”. Caso se pergunte, como quem quer ser surpreendido, “o que será a salada?”, saiba que na imensa parte dos casos é rúcula. Rúcula aside, rúcula em cima do risotto, rúcula em cima da pasta. Nós, brasileiros, quando chamados a pensar rapidamente em saladas, diremos “alface e tomate”. Europeus dirão “rúcula”. 


Gostei muito de conhecer Santiago, Lisboa e Porto, mas as três cidades têm um problema: coentromania. (Também já reclamei de outra sina de Santiago, que é o péssimo hábito de colocar abacate em tudo e achar estranho nosso pedido de querer uma versão sem. No quintal da minha casa em Blumenau havia três abacateiros e comíamos muito quando era época. Então enjoei. Hoje gosto de pouquíssimas coisas com abacate.) 


Viajando percebi meu lado velha: aprecio comidas que já conheço, não gosto de inovações e experimentações, não compreendo por que colocam crianças surrealistas insanas para temperar os pratos nas cozinhas. Havia um restaurante em Roma que colocava erva-doce na comida salgada (não, não era na conserva de pepino). Outro colocava alecrim demais. O uso de tomilho seco foi uma terceira tragédia. Há uma lenda de que “pratos veganos, para serem bons, precisam de muito tempero”. Quem lê essa recomendação de um jeito fatalista colocará tempero demais, ou misturará coisas absurdas – “aqui um pouco de manjericão, que tal uma pitada de tomilho?, pimenta-do-reino, quem sabe açafrão?, traga um ramo de alecrim” – que darão vida a uma monstruosidade frankensteiniana. Muitas vezes bastam azeite, alho, sal, limão, pimenta dedo-de-moça. 


Para desmanchar uma imagem de fresquíssima que pode ter grudado na mente de quem lê, aviso que meus pratos prediletos são muito simples: arroz, feijão-preto (sem poupar no alho; farinha de mandioca torrada caso o feijão tenha muito caldo) e salada; batatas assadas com azeite, alho, orégano (pouco) e pimenta dedo-de-moça; berinjelas assadas com azeite e alho; creme de lentilha vermelha; pizza de uma pizzaria particular de São Paulo que usa queijo de castanha de caju. Também aprecio muito uma combinação que tantos acham criminosa: macarrão (cabelinho de anjo grano duro) com molho de tomate e feijão. É ótimo. Quem não come não sabe o que está perdendo. Para o cafezinho da tarde, descafeinado e um naco de doce não muito doce. Tudo simples, saboroso e sem quinhentos temperos que passam informação demais. 


Minha pizza favorita no mundo é feita numa pizzaria de São Paulo que não é vegana (tem opções veganas). Prefiro dar dinheiro para estabelecimentos veganos, mas não sei como proceder quando descubro que um lugar não-vegano está fazendo determinada comida melhor que muitos veganos. Melhorem, empresários veganos, e tenham mais requinte para apresentar a quem já passou da fase de aceitar “catupsoy” com farelo de soja por cima. 


Roma foi uma decepção em matéria de restaurantes (jamais em matéria de pontos de visitação, pois tropeça-se em peça histórica a cada esquina). Pensei que seríamos recebidos com banquetes, fartura e bom vinho jorrando das fontes. Para comer e beber bem, entretanto, era preciso pedir vários pratos, o que levava a um gasto absurdo. Em um restaurante particular, o dono tentou conquistar nossos bolsos com muito papo furado e elogios: e eu lá sou de me hipnotizar por papo furado e bajulação? 


A pior refeição que já fiz na vida: Valparaíso, Chile, um restaurante ovolactovegetariano. Entramos somente porque tinha opções veganas, estava no caminho e tocava All mine, do Portishead. Os pratos não eram apenas ruins – eram nojentos, nauseantes, de pensar “estou dentro de um filme do Cronenberg e estou para me transformar numa mosca?”. Eu sei que parece horrível dizer uma coisa dessas – “a comida era um nojo, eu estava prestes a vomitar nas paredes” –, mas garanto que nunca vi comida horrível como aquela a ponto de me levar a declarações tão fortes. A cidade não ajudava: chegar a Valparaíso de ônibus e descer na rodoviária é uma visão do inferno (o nome “Valparaíso” é um deboche) de tanta bagunça e tanta sujeira. Eu já tinha concedido troféus “O Lixo” para bairros da Cidade do México e de São Paulo, mas descobri Valparaíso e tive que rever minhas avaliações por causa do novo forte competidor. 


Falei da pior refeição, que ocorreu no Chile. Mas os piores lugares para comer de modo geral foram Buenos Aires, Glasgow e Edimburgo. No caso de Buenos Aires, suspeito que a comida assustadoramente ruim seja um trote reservado aos veganos, pois muita gente volta de lá sem reclamar após ter ido a cafés e churrascarias (assassinos!, torturadores!). Já a Escócia, que nos deu tantos pensadores e cientistas importantes nas Idades Média e Moderna, parece ter mantido a culinária desses períodos históricos para celebrar essas figuras, homenageá-las. A fim de compensar a péssima comida medieval, há abundância de bebidas: só em Glasgow, a cidade das chuvas quase todos os dias, há quatro pubs veganos enormes. A comida na Escócia tem algumas possíveis personas: a) Gororoba – um misto de coisas não identificáveis a menos que se pergunte do que se trata; b) Insossa – o país é quase todo rodeado por água salgada, onde foi parar o sal?; c) Festival de pimentas – quem não sabe apimentar um prato acha que “quanto mais pimenta, mais sabor”, mas o alimento fica obviamente estragado quando muito apimentado e é impossível sentir o sabor de qualquer outra coisa após boca e língua ficarem anestesiadas de tanta picância; d) Ingredientes usados como pratos prontos – tofu cru enrolado em um lençol de alga não é imitação digna de peixe, e tofu deve ser usado como ingrediente (assado em tiras com temperos até torrar vira um ótimo “torresminho” para o feijão), não como prato, pois não tem gosto de nada; e) Da lata para seu prato – o nome é autoexplicativo e basta ver produções de cinema escocesas/inglesas para perceber do que se trata a febre dos enlatados daquelas bandas. 


Há um pequeno antro ovolactovegetariano em Edimburgo que vende batatas recheadas. É de fazer fila. E é de se preocupar com as papilas gustativas deterioradas dos que estão ansiosos na fila, pois as batatas deveriam ser embaladas num papel onde está a letra de Welcome to my nightmare, do Alice Cooper. Primeiro, batata é um alimento delicioso e simples – basta sal e azeite para ficar boa –, e nesse lugar comi a pior batata já existente na jornada da existência. Era gigante e lamentável. Segundo, o recheio: poucos sabores para veganos, e dentre eles um Festival de pimentas e um Feijão em lata direto para sua batata. A “arquitetura” caída e os atendentes com naturalizada cara de desprezo não ajudaram a melhorar a experiência. 


No geral, o melhor lugar para veganos que comem fora e gostam de beber: Madri. Há diversas cidades europeias boas para veganos, mas se tivesse que escolher uma só, elegeria Madri. Ela sai completamente dessa coisa meio antiquada do veganismo namastê aplicado à alimentação, que abomina álcool e frituras. Não é o que procuramos quando viajamos. Em Madri a maioria dos restaurantes veganos têm um estilo que puxa para o bar, e há muitas bebidas e as tais deliciosas croquetas (nosso “croquete”). Ou seja, sabe-se festejar. 


Outro lugar muito bom para beber e comer bem é Berlim, que merece menção honrosa como cidade receptiva a veganos. 


Gosto muito de beber, mas conversa de bêbado me incomoda. Enquanto muitos veem no bêbado alguém engraçado, eu vejo nele alguém prestes a se tornar muito chato, pegajoso (“você é tipo família para mim, eu te amo, juntos como família para sempre”) ou agressivo. O bêbado também esquece das coisas, e não compreendo a alegria de viver um momento se não puder me lembrar dele depois, assim como não gosto de estar falando em vão com quem não esteja prestando atenção porque está zonzo de bêbado. Se fosse para gostar de falar sem que me dessem atenção, teria me tornado professora, já que o papel carimbado para isso eu tenho. O ponto bom da bebida, na minha opinião: ficar alta. Alta, dançante, cantante, sem, no entanto, estar bêbada. 


Mas há conversa tão incômoda quanto a do bêbado: a do abstêmio quando quer falar mal de bebida e de quem bebe. O abstêmio não sabe medir proporções alcoólicas: para ele, alguém que bebe um copo de cerveja por dia é alcoólatra e precisa de tratamento. O abstêmio vê alguém que bebeu ficar mais animado e já fala, colono, “haha, o Zé já está bêbado, está até cantando” – ou seja, beber duas cervejas é “estar bêbado”. O abstêmio acha que beber é para “ocasiões especiais”: se você chega do trabalho numa quarta-feira, serve-se um copo e tem um abstêmio como visita, ele vai se preocupar com a estranheza de você estar bebendo numa noite do meio da semana. (Abstêmio querido: minha vida é toda especial, então qualquer momento que não seja antes do meu trabalho ou durante ele é uma “ocasião especial” que pode ser acompanhada por bebida.) O abstêmio que raramente bebe é vítima da nossa misericórdia: sair para beber com ele se torna um evento, porque ele bebe tão poucas vezes que quando bebe acha que está vivendo um ritual de passagem, que transgrediu as convenções sociais, sente como se beber no sábado como despedida dos colegas de curso fosse a aventura do ano. Vai falar por meses “lembra aquele dia em que a gente bebeu?, foi insano!”. 


Alemanha e República Tcheca rivalizam em matéria de quem mais bebe per capita e na produção de boas cervejas. Apesar de a Alemanha ser um dos meus países preferidos, é preciso admitir que a produção de cerveja da República Tcheca é melhor em impressionar. Há bares punks e de metal em Praga que não têm letreiro na porta; só sabe que atrás daquela porta decadente – com belo prédio antigo em cima – há um bar aqueles que já conhecem o bar. Dentro, estilo cru de “aqui se bebe, não fazemos pratos ou fritas, calouro”. Pois qualquer cerveja barata que se peça é maravilhosa, saborosíssima, e dificilmente dá ressaca. A cerveja mágica é, lá, uma banalidade. Meu namorado e eu fomos visitar um casal que nos serviu cerveja em garrafa de plástico. Ambos pensamos, sem precisar fazer contato visual, “cerveja em garrafa de plástico?”, e ambos tivemos que morder a língua porque aquela cerveja tcheca barata em embalagem ruim era ótima. 


Suécia é um país de chorar de lindo para você visitar antes que seja transformado pela invasão muçulmana fecundante. Os simplistas fanáticos por maniqueísmo e por posar de justiceiros vão gritar, aqui, “xenofobia!”, mas todo ano testemunho pessoalmente a mudança da Suécia e também sei do potencial que um povo ansioso em fazer filhos tem de passar a dominar um lugar (muçulmanos têm sanhas expansionistas, e há previsão de que daqui a poucas décadas serão maioria na Europa). Ainda assim, aqui não é lugar para detalhamento de fatos que definhem o romantismo dos tapados defensores de “um mundo sem fronteiras”, portanto deixarei a continuação do meu protesto à abertura descontrolada de portões europeus (abertura mal pensada que criou um choque cultural capaz de fazer renascer a direita extremista, e com mais adeptos) para outra postagem. Por enquanto, fiquem com esse conselho de visitar a Suécia o quanto antes, mas preparem-se para se adaptar a restrições alcoólicas. É proibido beber na rua e não se vende bebida com alta graduação alcoólica (mais de 3%) em supermercados. As cervejas fracas disponíveis são conhecidas como cat piss. O país tem um mercado especial de propriedade do governo que vende somente bebidas alcoólicas, chamado Systembolaget, aberto em horários restritos, ou seja: se às 21h de um sábado você quiser comprar cervejas com graduação alcoólica de 6%, vinho ou vodca, não encontrará, a menos que vá a bares autorizados (desde que seja para beber no local, não para comprar e levar). Os suecos estão adaptados a esse sistema que existe há muitos anos com vistas a combater excessos, e por isso sempre se organizam para comprar o que precisam nos horários em que o Systembolaget está aberto. Quanto a estabelecimentos como bares e restaurantes, é trabalhoso conseguir a permissão para vender bebidas alcoólicas, por isso não se vê tantos bares nas ruas de Estocolmo quanto se vê em outras capitais. Se quiser beber cerveja boa e “barata” numa cidade cara como Estocolmo, há um bar muito bom no centro chamado Carmen. É só para beber, não para comer. Tem comida, mas é medíocre, como se tivesse sido feita por homens solteirões sem nenhum rigor culinário. Não duvido que outras mesas possam dar uma olhadela para um casal de estrangeiros cheirosos que pediram comida e rir “olha ali, pedindo comida no Carmen, haha”. 


Comportamento a lamentar: aquele que se excita com comida grátis. Isso não tem classe social, pois há pessoas com salários polpudos que não são capazes de ir à confeitaria comprar um classudo pedaço de bolo, mas quando veem bolo grátis no aniversário do colega de trabalho, na confraternização do curso, na abertura de um evento, preparam-se com toda a sua gula. Os mesmos sujeitos gostam de regular com severidade comidas e bebidas que possam, eles, oferecer aos outros. Minha teoria é de que pelo menos 80% dos empolgados com comida grátis são avarentos. E a avareza, não me interessa o que dizem os gurus da poupança “é de moeda em moeda que você vai se tornar um milionário”, é um defeito pavoroso. 


Não confundam minha mão aberta com desperdício e farra. Acho absurdo luz acesa em sala sem ninguém, calculo o custo-benefício do que compro e faço bom uso do dinheiro que recebo porque vendo 35h semanais do meu livre ser para um bom empregador (o Estado). 


Já que acordo tarde, o almoço é a primeira refeição que faço no dia. Viajando às vezes acordo mais cedo do que o habitual para aproveitar a cidade, mas na Espanha (e em outros países de língua espanhola, como o Chile) isso não é lá a melhor ideia para quem não toma café da manhã, porque muitos restaurantes só começam a servir almoço às 13h ou às 13h30. Para piorar, alguns deles fecham a cozinha às 15h30, ou seja, tem-se 2h para comer. “Quem não come em 2h?”, alguém pergunta. A questão é: quem em férias não gosta de chegar, pedir bebidas e umas entradas, ficar de conversa com a pessoa amada, pedir mais bebidas e só depois, bem depois, pedir os pratos? Compensa-se isso com o jantar, é verdade, que vai até altas horas. Mas os mesmos restaurantes só abrem para o jantar às 20h30! Após uma tarde de muitas andanças você vira para seu companheiro e diz “eu poderia comer uma árvore agora”, então vocês olham no relógio e são 19h, significando que falta 1h30 para os restaurantes começarem a abrir, etc., etc. 


Não tenho fissura por doces, sou das pessoas que conheço que menos come açúcar, mas viajando abro um mês de exceção e acabo comendo sobremesas todos os dias porque gosto de experimentar o que cada restaurante tem a oferecer. E se tem algo impressionante em sobremesas em restaurantes europeus é como conseguem fazer tantas opções crudívoras boas. Há “cheesecakes” que é difícil crer que são veganos e crudívoros. Não, não têm o mesmo gosto daquele que leva secreção bovina, mas ainda assim são ótimos. 


Existe um livro chamado 1001 vinhos para beber antes de morrer. Nunca o li porque quando não tinha dinheiro só tomava vinho barato, e agora que posso tomar vinhos melhores já achei “meu vinho”. Uma vez que encontramos nosso vinho é preciso mesmo ficar testando outros rótulos? Se já encontramos o vinho correto, por que manter as buscas? Por que criar ansiedade sobre 1001 vinhos diferentes que precisam ser experimentados? Agradeço ao aeroporto do Chile por ter me apresentado vinhos que se tornaram ocupação na minha adega. 


Às vezes somos surpreendidos. Não sou fã de alecrim na comida – aromatizando o ambiente tudo bem –, mas um dos melhores pães de fermentação natural que comi é de uma padaria artesanal de São Paulo que tem no pão de alecrim com sal grosso um de seus carros-chefe. Desconfio de rótulos mal feitos – “confiar no conteúdo desse frasco com rótulo feito por quem não tem nenhuma noção de design e tipografia?” – e na casa cerealista que frequento sempre me ofereciam um tal “requeijão de castanha de caju” de péssimo rótulo e nome de marca, digamos, bicho-grilo. Um dia superei o preconceito e levei para casa o tal frasco (que felizmente era de vidro). Arrependi-me de não ter comprado antes, porque esse requeijão é o céu tornado creme. Não, não se parece com o estranho requeijão comum – é muito melhor. E com apenas três ingredientes: castanhas de caju, sal e lactobacilos vivos. Fico bem alegre e até besta quando as pessoas conseguem aprimorar tanto um talento que são capazes de criar alimentos fabulosos com poucos ingredientes saudáveis. 


Produção artesanal de alimentos: isso é para quem está ocioso ou realmente ama cozinhar. Geralmente, para a maioria dos mortais – muito ocupados e/ou não exatamente amantes de passar horas na cozinha – não vale a pena fazer cerveja, pão e conservas em casa. Tem quem faça e venda. É muito mais prático comprar dessas pessoas, e é bom pensar nisso antes de se encantar com uma paixão passageira. Faltam-me dedos para contar os sujeitos que começaram a fazer produtos artesanais trabalhosos e depois pararam. E aí tiveram que vender os aparatos, readaptar o espaço, etc. 


Quando me perguntam se gosto de cozinhar, não sei o que responder. Se eu disser que gosto, acharão que faço pratos elaborados e passo a tarde de sábado brincando de Dona Benta. Se disser que não gosto, acharão que cozinho com ódio no coração. Na verdade eu gosto, mas de um jeito simplíssimo: gosto de fazer o almoço, raramente faço pratos difíceis, quase nunca faço receitas com mais de sete ou oito ingredientes, se passo mais de duas horas cozinhando me pergunto abruptamente, revoltada e largando as colheres, “por que tudo isso?” – uma crise existencial numa situação inusitada. “Gostar de cozinhar” significa que cozinho tranquilamente quando é preciso. Numa vida de tempo limitado é preciso eleger prioridades, e dormir, comer bem, ler, ver filmes e passear são, sem dúvida, prioridades maiores do que cozinhar. 


São Paulo é a cidade culinária do país. Para veganos não é diferente. O problema é que é uma cidade insegura: não saio tanto quanto gostaria porque minha vontade de viver e ter integridade física é maior que minha vontade de conhecer lugares novos. Na Europa ainda é possível, nas capitais, sair todas as noites, perambular pelas madrugadas sem medo. Venero andar à noite. Alguém tem que rebater aquele pálido livro O milagre da manhã e escrever uma adoração chamada O milagre da noite: a noite é mágica, é nela que conhecemos pessoas interessantes (ou “as pessoas chatas de dia ficam menos chatas e colonas à noite quando bebem”), é à noite que vivemos experiências estranhas (e belas). Um dos filmes preferidos da minha vida se passa à noite – Depois de horas (1985, After hours, Scorsese) – e sei que parte do seu charme é justamente porque tem a noite como fundo. É à noite que as pessoas dançam (dançar, que é uma coisa linda que quase só acontece de manhã para quem está lutando para perder peso numa academia para mulheres, ou seja, zero encanto). Mas em São Paulo, ou no Rio, ou em Porto Alegre a noite não é tão amigável, pois você está rindo, feliz, e logo lembra que tem que estar atento para a moto que se aproxima, para o carro que encosta ao lado, para o cara que está atrás indo no mesmo caminho. Sempre é muito injusto quando não se pode aproveitar a vida em toda sua plenitude por causa do medo que se tem do mal que outras pessoas são passíveis de causar. A liberdade é tão preciosa e às vezes tão difícil. Temer o perigo da noite só não me atormenta em lamúrias porque ficar em casa é uma opção maravilhosa. 


Portugal me impressionou por ter café descafeinado com facilidade nos estabelecimentos. Até nos trens. No Brasil há cafeterias em que os funcionários riem da sua cara se você perguntar se eles têm café descafeinado, e depois soltam uma fala como “aqui não vendemos esse tipo de item”. Sou ansiosa, e uma pessoa ansiosa persistir em tomar muito café, Cola-Cola e comer chocolate é, vão me desculpar, uma estupidez. A menos, claro, que se prefira dar o grande salto e começar já de cara a tomar as tarjas pretas que os médicos receitam com uma facilidade de prestidigitador. Abomino remédios, pago para não tomar remédios e já passei anos sem tomar um remédio sequer (tenho uma pequena vaidade nisso, sei que está na cara) – então optei pela medida natural de eliminar boa parte desse mal chamado cafeína que funciona como uma droga dentro do meu organismo. Um espresso de tamanho médio desencadeia as seguintes etapas: 

1. Mother we just can't get enough, New Radicals – Floreio girlie. Vontade de dançar na rua com minha mochila florida e meu diário nas mãos, enquanto sorrio debilmente para estranhos. Algo bom começa a me dar uma animada diferente. Quero comprar camisa e calça amarelas, e também um chapéu de palha. 

2. Running with the devil, Van Halen – Sensação de poder. Ando pelas ruas como se fosse mais bonita e descolada que qualquer colono mediocrizado. Faço o solo de guitarra. 

3. Metal command, Exodus – A cafeína atinge seu ápice e meu recorrente charme mórbido de “vou tacar fogo na cidade” parece mais real do que nunca. Sinto que posso correr meia maratona, tocar o terror na saída de uma missa, passar um trote audaz para o Rodrigo Bocardi reclamando do jornalismo tosco modernoso que ele representa (com piadas ruins, interação com o telespectador que só opina obviedades, uso de gírias e aquele maldito “dormir até acordar” que sempre me fez perguntar “quem é que aguenta dividir a cama com esse chato?”). Quero colocar meu nome à disposição para ser síndica do condomínio e fazer a revolução, com posto de empréstimo de ferramentas e reciclagem minuciosa do lixo. 

4. Man in the box, Alice in Chains – Queda brusca. Nervosismo, tremor nas mãos, sentimento de que coisas ruins estão para acontecer. “Coisas ruins” não são um peido escapando no elevador lotado ou o sistema biométrico do meu prédio não reconhecer minhas digitais, são violência e morte. Se estou num carro, sou tomada pelo pensamento “esse motorista dirige muito mal, é um suicida, vai nos matar!”, se estou num ônibus, “esse motorista vai nos jogar no primeiro barranco ou ponte!”, se estou num avião, “e se piloto e co-piloto fizeram um pacto suicida para serem lembrados na história por um crime?”. Não há paz nessa fase e o menos pior é estar em casa encolhida dentro de uma caixa de papelão. 

5. Sense of doubt, David Bowie, música das cenas mais escuras de Eu, Christiane F... (1981) – Trevas, trevas, trevas. Alucinações e trevas. Sem nenhum exagero, já cheguei a achar que estava perdendo um braço e que invadiriam minha casa para um A sangue frio, do Capote (bom livro, bom filme). Se estiver à noite na cama tentando dormir (em vão), imagino cenas de terror. Tento racionalizar “é só aquele café que bebi”, mas os pensamentos assustadores não param de brotar. 

6. Take a ride, Club 69 – Muitas horas depois, é um alívio maravilhoso me ver livre do efeito da cafeína e fico alegre de um jeito house music

Além disso, é claro, o café comum atrapalha a coisa mais importante da minha vida: meu sono. Esse mesmo espresso que me leva do céu ao inferno – se eu tomá-lo às 9h da manhã, só conseguirei dormir às 5h da madrugada, ou seja, 20h depois. 


“E qual é a graça do café sem a cafeína?”. A graça é o sabor. Não bebo café para ter que me manter acordada ou para ter ânimo para enfrentar o dia, bebo porque aprecio o sabor e isso os bons descafeinados mantêm. Se o colega precisa de cafeína para ficar acordado ou dar conta dos afazeres, é bom consultar um especialista do sono. 


Acho estranho pessoas que gostam mais de doce do que de salgado. Acho estranho pessoas que não gostam de frutas. Acho estranho quem não come feijão. Acho estranho trocar refeições por beliscadas. Acho estranho quem gosta de beber até cair para no dia seguinte estar quase morrendo. Acho estranho quem come margarina em 2018, mesmo lendo os ingredientes estrambólicos do rótulo. Acho estranho quem acha normal uma criança comer bisnaguinha, cereal e achocolatado quase todos os dias. Acho estranho quem pratica corrida e defende o corpo como um templo, mas antes de todo exercício come coisas como bolachas recheadas. 


Quando estou viajando, o alimento de que mais sinto falta do Brasil é o feijão-preto. Por mais tipos variados de feijões que uma cultura possua, nada se compara ao feijão-preto brasileiro. Existem barreiras culturais que são difíceis de transpor. 


Fachada alimentar é aquilo de fingir para os outros um estilo de alimentação que não se tem. Muitas pessoas obesas comem pouco (às vezes pouquíssimo) em público porque temem ser julgadas pela glutonice, ou porque querem fazer parecer que sua obesidade não tem explicação. Comem três minipastéis no aniversário de um bebê e dizem “estou cheia”, fala que gera silêncio constrangedor por causar tilt nas cabeças dos outros convidados. Na outra ponta, muitas pessoas magras que fazem dieta frequente em casa e comem feito pássaros gostam de em público comer à vontade para fazer parecer que são agraciadas de comer o que querem sem engordar, querem ser invejadas (é comum, claro, entre mulheres, que ainda não são nem 10% da virtude que o feminismo alega que sejam). Antes e depois dessa cena estão praticando jejum, mas com amigos são como modelos mentirosas que dizem comer o que bem entendem, inclusive “muito chocolate”. Até existem casos assim, mas são tão raros que dificilmente se estará na frente de um. Geralmente é apenas uma fachada. 

*

Tenho fé na ciência. Fé no sentido de que ela possa resolver as dores da humanidade e da natureza se os homens deixarem. Não tenho nenhuma esperança de que as pessoas deixem de comer animais mortos por ética (animais que sofreram desnecessariamente para atender aos caprichos de quem não se vê privilegiado tendo supermercado onde comprar milhares de outras comidas variadas), mas tenho esperança que a ciência consiga criar carnes de laboratório, geradoras de nenhum sofrimento, capazes de substituir os pastos que desmatam a Amazônia, os porcos mortos a marretadas, as galinhas sufocadas sem poder ciscar e socializar, as vacas com “brincos” marcando seu número no processo. Recentemente li sobre a empresa Just Meat, que está perto de comercializar carne de frango feita em laboratório usando apenas células retiradas da pena de um galo chamado Ian. Ian não sofreu nada para que esse produto fosse feito, e talvez no futuro a mesma empresa, ou outras, possam fazer carnes de laboratório de outros animais. Se a demanda for grande e houver pressão para que essa carne substitua a “tradicional”, os preços poderão baratear e tornar padrão a carne de laboratório, reduzindo cada vez mais o espaço para produtores cruéis comercializarem cadáveres a consumidores que se importam mais com o preço do que com a proveniência dos bens. Só a ciência pode alcançar um feito desses, e eu gostaria de estar viva para ver esse tipo de mundo se tornar real. 


Aqueles que dizem “vocês veganos são muito radicais não querendo que o bicho morra, eu sou apenas contra a tortura, acho que o bicho deve receber abate humanitário” nunca, nunca, quase nunca fazem pesquisa para encontrar marcas que façam abate humanitário. Dizem ser contra tortura de animais, mas comem carnes de marcas que não estão dispostas a mudar seu sistema de confinação e abate para melhorar a vida daqueles que serão mortos e virarão comida. Ou seja, papo furado. Pior do que alguém achar que é bom sendo imoral com facilidade é alguém achar que é um pouco melhor que todos porque domina um bom papo furado. 

***

NOTAS 

1. As duas músicas do PIL que guiaram esta postagem estão no álbum Happy?, de 1987. Sempre estive atrasada com as tecnologias, principalmente por questões financeiras. Então quando todo mundo tinha discman, comprei meu primeiro walkman (deixei de comprar a apostila do colégio para usar o dinheiro nisso). Quando todo mundo tinha aparelho de mp3, comprei meu primeiro discman e assim sucessivamente. Logo que comprei meu walkman (2005?) fui ao Book Center (maior sebo de Blumenau e hoje o único) ver o que eles tinham de fita k7 barata para vender. Comprei a fita Happy?, do PIL, por acaso, porque gostei da capa, suspeitando que fosse rock. Na época não fazia ideia de que o vocalista do PIL era o John Lydon, que eu adorava dos Sex Pistols. Descobri somente anos depois que os Sex Pistols acabaram e ele montou o PIL (em 2005 eu ainda não tinha computador em casa para fazer essas pesquisas). No mesmo dia no sebo comprei também, no escuro, a fita Divinyls (1990), do Divinyls. A única música que reconheci foi “I touch myself”, muito tocada em rádios, mas dancei muito com “Bless my soul (it's rock n' roll)”. Cada fita me custou um real, e não duvido que dois reais era tudo que eu tinha, mesmo, para gastar comprando fitas naquele dia.

2. Os atentos poderão perceber o conflito de acordar tarde e saber quem é Rodrigo Bocardi, que apresenta o jornal das 6h em São Paulo. Havia um tempo em que almoçávamos vendo esse jornal horas depois no aplicativo da Globo na TV. Como somente 15min se aproveitavam dele – o restante era sobre trânsito, previsão do tempo, piadas dos apresentadores, leitura demorada de tweets de telespectadores comentando sempre as mesmas coisas banais –, paramos de vê-lo. 

3. Club 69 é um dos apelidos do DJ austríaco Peter Rauhofer cuja melhor música é, na minha opinião, “Take a ride”. Morreu jovem, aos 48 anos, por causa de um tumor no cérebro. Era apaixonado por música eletrônica e trabalhou com vários artistas, sendo considerado por fãs um dos melhores DJs do mundo (talvez um exagero). Enquanto alguns animados que têm o azar de ter esse tipo de problema morrem, outras pessoas que parecem ter desprezo pela vida vão se arrastando até longa idade reclamando do corpo, de envelhecer, da falta do que fazer em feriados. Eu até queria que existisse um Deus para resolver essas injustiças de matar quem ama viver, colocar em cadeira de rodas quem pratica esportes e manter a saúde de quem meramente sobrevive vendo TV e lendo as redes sociais dos outros, mas esse é um lamento sem sentido, porque o único Deus que existe é o que foi criado pela literatura da humanidade para servir de amuleto e suavizar o medo de morrer. 

4. Antes que perguntem, já respondo: eu comeria a carne limpa, zero tortura, zero mortes da Just Meat.

5. Tenho que usar óculos para estar no computador, e venho sentindo cada vez mais os efeitos de ter sido alguém que passou muitos anos lendo em quartos apertados em vez de estar exercitando os músculos da visão em lugares abertos (sim, era das últimas a serem escolhidas nos grupos de educação física, e defendo as cortadas do vôlei colocando meus braços para proteger minha cabeça em vez de preparar uma poderosa manchete), então melhorei a fonte dos textos do blog (agora, Cambria) e aumentei o tamanho de 14 para 16 pontos. Espero que tenha melhorado para vocês como melhorou para mim.

6. De tempos em tempos mudo a imagem de entrada do blog. A que estava até hoje era da Cordilheira dos Andes no trecho do Chile. Uma vez deixei uma imagem de Estocolmo por três dias, mas tirei porque era vertiginosamente linda e poderia desviar a atenção dos textos. Agora está aí a tragédia da morte de Albert Camus, ocorrida em 4 de janeiro de 1960 e noticiada no Combat. O jornal recebeu muitas contribuições de Camus (editor chefe de 1943 a 1947), depois foi deixado por ele e em 1974 deixou de existir.