quarta-feira, 29 de abril de 2020

Compilado de parasitologia humana, parte II: o pós-moderno



Era muito trabalho, e tarefa das boas, 
Ter de desenterrar mérito nas pessoas.” 
– Personagem Alceste, protagonista da peça O misantropo, de Molière 

Na primeira parte desta série estávamos na cozinha conversando enquanto descascávamos batatas e cebolas. Agora vamos limpar nossas mãos nos aventais, vestir uma camisa de algodão tirada do cabide, pegar um bloco de notas e rumar um pouco para o entorno de pequenas tribunas. A partir daqui, as partes do compilado serão, portanto, mais políticas. Mas no trajeto de ida e volta, enquanto sacolejamos no ônibus usando máscaras de proteção contra o novo coronavírus, podemos falar ainda de assuntos combinantes com o cenário das panelas e louças. Não é preciso polarizar também os espaços públicos, “onde as coisas realmente acontecem”, e os espaços domésticos, tantas vezes menosprezados como desimportantes. Só não sou dona de casa porque me acostumei a um padrão que meu salário me permite manter e porque trabalhar para ganhar o próprio dinheiro sacrifica certas liberdades, mas traz outras que considero valiosas. E só não me meto em partidos políticos porque abomino a ideia de fazer tratativas com inimigos e fingir acreditar em besteiras para conquistar o voto popular. Estou livre para costurar fronhas floridas e ir à praça fazer um protesto. 

Esta parte II do Compilado de parasitologia humana era para ser sobre pós-modernos e bolsonaristas. Como o texto sobre pós-modernos cresceu muito – e tive que me conter para não escrever ainda mais –, resolvi deixar só os pós-modernos e colocar os bolsonaristas na próxima parte. 

***

PÓS-MODERNO 

O pós-modernismo é uma multiplicidade de coisas tortas a arrastar seus tentáculos para as ciências humanas, as artes, os relacionamentos e até – com bastante atrevimento – para as ciências exatas. Com sua monstruosidade plural, torna-se difícil fazer uma definição concisa do que significa, parecendo ser mais fácil explicar os efeitos deletérios que promove. Mas o Oxford Reference dá uma rápida ideia da patologia: 

“A belief that individuals are constructs of social forces, and that there is no absolute transcendent truth that can be known.” 

É um interessante ponto de partida, a despeito de não entrever isto: ainda que defendendo a relativização constante da verdade, pós-modernos são, no final das contas, tiranos de novas verdades criadas por eles mesmos, muitas vezes sem nenhum fundamento válido. O que quero dizer com “fundamento válido”? Quero dizer uma argumentação honesta que se ampare em pressupostos palpáveis capazes de fazer sentido dentro de uma base lógica da construção do conhecimento. Em sua busca pela chancela do absurdo, entretanto, pós-modernos criam outros parâmetros de avaliação para suas alucinações. Lembram religiosos vitimados pela importação de regras externas mirabolantes: 

– Deus não existe. 
– Prove. 
– O ônus da prova cabe a quem afirma, não a quem contesta. 
– Eu sinto Deus, isso prova que ele existe. 
– Seu sentimento não é um método razoável para averiguar isso. 
– É o que você diz. Acho absolutamente plausível. Eu sinto. E ponto. 

Se Deus existe apenas porque você o sente, o que impede a existência dos seres que fazem vozes dentro da cabeça de alguns esquizofrênicos? 

Pós-modernos em debate lembram também aqueles que relativizaram até a medula o valor artístico, passando a conceder espaço a instalações e peças grotescas: 

– Isso não é arte. 
– É arte, sim. Quem é você para discutir o que é arte e o que não é? 
– Mas isso é só um prato de comida sobre a mesa colocado no centro de uma galeria. Não tem construção, não tem técnica e o conceito é forçado. 
– Parece que você rejeita só porque não consegue compreender o valor. Parece que está preso a valores artísticos antiquados. Deveria abrir mais a cabeça. Se tantas pessoas enaltecem essa instalação e se ela está valendo muito dinheiro, deve ser porque algum mérito existe. 
– Mérito? O rei está nu. Desde quando acompanhar o rebanho rumo ao precipício é virtude? 
– O que é a arte? Quem pode determinar o que tem valor artístico? Você, que nunca criou nada? 
– O fato de eu não ter feito nada de bom não transforma essa peça numa coisa valiosa. Isso é enganação. E para a enganação parecer correta vocês relativizaram o sentido da arte. 
– Essa é uma arte à frente do nosso tempo. Quando Nietzsche começou a publicar seus livros, ninguém deu valor. Hoje ele é considerado um dos maiores filósofos da humanidade. Talvez essa instalação seja demais para você, regressista apegado a uma arte que não se faz mais. Mas não queremos cometer com essa arte o erro que foi cometido com Nietzsche, queremos? 
– Olha em quantas falácias você incorre para defender essa anomalia… Valorizar essa obra é patético. 
– E “patético” é ad hominem. Quem determina o que é arte e o que não é? 

Quando o argumentador traz ao jogo uma nova lei que não é própria do jogo – estilo Calvin e Haroldo criando na hora as regras de suas disputas a fim de fazer um mau lance se transformar num trunfo –, é quase impossível ir adiante no debate, porque ele vai continuar martelando a tecla da lei externa furada que importou, como se ela, essa lei, merecesse estar nivelada com as outras que já eram consenso. É preciso calma e frieza para conseguir entrar nesse tipo de discussão com gente confusa sem sentir, em dado momento, uma agonia existencial tão grande que fará você ter vontade de arrancar os próprios cabelos para demonstrar até que ponto nervoso vai para forçar o oponente a abrir os olhos à razão. Não é uma perspectiva favorável: 

1. Sua agonia pode ser erradamente tomada como desequilíbrio e a plateia pode concordar com o ignorante resistente só porque enquanto você arrancava os cabelos ele estava ajeitando as próprias abotoaduras com a paz externa de uma planta no meio de um incêndio. 

2. A numerosidade pode ter valor psicológico quando você é uma única pomba na ilha dos gatos: defender solitariamente a razão no meio de caipiras cerebrais – cujos cérebros, por ausência de estímulos adequados quando requeridos, não puderam se desenvolver em seu mínimo melhor ainda que seus transportadores tenham feito faculdade e escrito colunas para jornais – fará com que eles tendam a achar que você é que está fora de quadro com sua ideia destoante do grupo. Se você já teve uma contenda acalorada com outra pessoa em óbvio equívoco sem mais ninguém presente, deve ter percebido que para ela, ao não ceder e querer mostrar uma posição digna, estava clara a possibilidade de vocês dividirem a razão em 50/50, como num cálculo de chances entre cara e coroa. “Talvez você esteja certa, mas eu igualmente posso estar certa”, ela deu a entender com dado movimento de sobrancelhas e aperto de lábios enquanto defendia uma teoria conspiratória. E você pensou, coçando de desespero, “se ao menos eu tivesse mais alguém para me apoiar aqui...”. 

Essa dança descabida não ficou marginalizada, mas ganhou teorização, importância e ares na forma de conceitos como relativismo epistêmico, combatido pelos cientistas Alan Sokal e Jean Bricmont no livro Imposturas intelectuais: o abuso da ciência pelos filósofos pós-modernos, que é 

“[…] a ideia […] de que a moderna ciência não é mais que um 'mito', uma 'narração' ou uma 'construção social', entre muitas outras.” 

O pontapé da obra é afamado, mas não custa repeti-lo porque em algum instante determinada informação encontra um sujeito pela primeira vez. Na resenha do livro feita no texto O pós-modernismo desnudado, publicada no compilado ensaístico O capelão do diabo, Richard Dawkins resume a história: 

“Como é hoje um fato bem conhecido, Sokal submeteu, em 1996, um artigo intitulado 'Transgressão das fronteiras: por uma hermenêutica transformativa da gravidade quântica' ao periódico americano Social Text. O artigo era sem sentido do começo ao fim. Tratava-se de uma paródia cuidadosamente construída da metatagarelice pós-moderna. O que inspirou Sokal a fazer isso foi o livro de Paul Gross e Norman Levitt, Higher superstition: the academic left and its quarrels with science, uma obra importante que merece tornar-se tão conhecida na Grã-Bretanha quanto ela é nos Estados Unidos. Mal podendo crer no que o livro dizia, Sokal foi atrás das referências da literatura pós-moderna e descobriu que Gross e Levitt não estavam exagerando. Ele decidiu fazer algo a respeito.
[…]
“O artigo de Sokal deve ter sido visto como um presente por esses editores, pois se tratava de um físico fazendo todas as afirmações em voga que eles desejavam ouvir, atacando a 'hegemonia pós-iluminista' e outras ideias pouco bacanas como a existência do mundo real. Eles não sabiam que Sokal havia também abarrotado seu artigo com erros científicos notórios e clamorosos, de um tipo que mesmo um parecerista que ainda estivesse cursando a graduação em física teria detectado imediatamente. O artigo não foi enviado a nenhum parecerista. Os editores, Andrew Ross e outros, se contentaram com o fato de que a ideologia do texto correspondia à deles e é possível que tenham ficado lisonjeados com as referências a seus próprios trabalhos. Esse vergonhoso trabalho de edição rendeu a eles, justificadamente, o Prêmio Ig Nobel de literatura de 1996.” 

Na introdução a Imposturas intelectuais há detalhada explicação sobre o experimento de Sokal, que se tornou um marco e para muitos desfez uma ilusão: 

“Por meio de uma série de raciocínios de uma lógica espantosa, o artigo chega à conclusão de que 'o π de Euclides e o G de Newton, antigamente imaginados como constantes e universais, são agora entendidos em sua inelutável historicidade'. O restante prossegue na mesma linha.
“Apesar disso, o artigo foi aceito e publicado. Pior, foi publicado numa edição especial da Social Text destinada a refutar a crítica dirigida ao pós-modernismo e ao construtivismo social por vários cientistas eminentes. É difícil imaginar, para os editores da Social Text, um meio mais radical de atirar nos próprios pés.
“Sokal revelou rapidamente sua artimanha, provocando uma reação tempestuosa tanto na imprensa acadêmica quanto na imprensa em geral. Muitos pesquisadores em humanidades e ciências sociais escreveram a Sokal, às vezes de maneira muito comovida, para agradecer-lhe o que tinha feito e para expressar sua própria rejeição às tendências pós-modernistas e relativistas que dominam largas parcelas de suas disciplinas. Um estudante achou que o dinheiro que tinha economizado para financiar seus estudos tinha sido gasto com as roupas de um imperador que, como na fábula, estava nu. Outro escreveu que ele e seus colegas tinham ficado excitados pela farsa, mas pedia que seu estado de ânimo fosse mantido em segredo porque, se bem que desejasse mudar as atitudes na sua disciplina, ele só poderia fazê-lo depois de assegurar um trabalho permanente.” 

Tristemente, a repercussão do embuste não impediu que esse problema – seus advogados chamam de “estilo” – se alastrasse, tanto é que mais de duas décadas depois do caso Sokal versus Social Text ainda vemos autores de textos sem pé nem cabeça serem aplaudidos, citados e incentivados por membros de universidades de prestígio. Mais adiante em sua resenha, que pode ser lida em inglês caso você não tenha acesso ao esgotado O capelão do diabo, Dawkins nos lembra do divertido gerador pós-modernista, um programa de computador criado por Andrew Bulhak que elabora, em cada acesso, um discurso pós-moderno inédito usando normas gramaticais corretas e fazendo o texto parecer íntegro e profundo aos olhos de quem enxerga só o que quer enxergar. O link sugerido por Dawkins foi alterado e agora o acesso ao gerador acontece por aqui. Toda vez que você acessar, um novo texto pós-moderno aparecerá. Quando Dawkins acessou, o programa gerou um artigo de 6 mil palavras intitulado “A teoria capitalista e o paradigma subtextual do contexto”, do qual ele destaca o seguinte trecho: 

“Ao examinarmos a teoria capitalista, nos vemos diante de um impasse: rejeitar o materialismo neocontextual ou concluir que a sociedade tem valor objetivo. Se o dessituacionismo dialético tem validade, temos que escolher entre o discurso habermasiano e o paradigma subtextual do contexto. Pode-se dizer que o sujeito é contextualizado num nacionalismo textual que inclui a verdade como uma realidade. Num certo sentido, a premissa do paradigma subtextual do contexto afirma que a realidade advém do inconsciente coletivo.” 

Se você passou por um curso de Humanas sem ter lido algo parecido com isso, 

a) Parabéns, propague os nomes dos professores responsáveis 
b) Como a imensa maioria dos alunos, você leu pouco durante a graduação; envergonhe-se 
c) Tem certeza de que era um curso de Humanas? 

Textos difíceis não devem ser taxativamente relegados ao ostracismo em nome da clareza suprema. Às vezes eles têm sentido e são difíceis apenas porque os autores preferiram tratá-los assim, seja por maneira pessoal ou por tendência estilística da época. Ninguém diz, a sério, que Kant é um engodo porque escreveu obras rebuscadas. Às vezes alguns textos só parecem difíceis porque você não domina seu conteúdo. Também somos livres, é claro, para optar por não ler textos herméticos e prolixos demais, mesmo que tenham sentido. Ou podemos, é humilde e válido, ler textos difíceis e com sentido acompanhados por comentadores que esclarecem suas dificuldades. Ler Fausto sem glosas teria sido uma experiência manca para minha fruição da obra, e mesmo uma literatura tão simples como O médico e o monstro, de Stevenson, foi melhor aproveitada com comentários. Quem só quer carregar para a cama leituras fáceis que não exigem nenhum grande esforço viverá sendo um espírito de prato que não sai do nível Caio Carneiro, Jojo Moyes e Augusto Cury de elaboração do pensamento. 

Contudo, eu me pergunto o que leva alguém, com vistas à popularização da filosofia, a escrever em pleno século XXI algo como: 

“A dialética da negatividade é o traço fundamental da imunidade. O imunologicamente outro é o negativo, que penetra no próprio e procura negá-lo. Nessa negatividade do outro o próprio sucumbe, quando não consegue, de seu lado, negar àquele. A autoafirmação imonológica [sic] do próprio, portanto, se realiza como negação da negação. O próprio afirma-se no outro, negando a negatividade do outro. Também a profilaxia imunológica, portanto a vacinação, segue a dialética da negatividade. Introduz-se [sic] no próprio apenas fragmentos do outro para provocar a imunorreação. Nesse caso a negação da negação ocorre sem perigo de vida, visto que a defesa imunológica não é confrontada com o outro, ele mesmo.” 

Esse é um trecho de Sociedade do cansaço, do filósofo Byung-Chul Han, que é para ser uma crítica à modernidade. Por que escrever assim? E como é que alguém que escreve assim hoje em dia consegue uma legião tão grande de adoradores? Acredito em duas explicações. 

Primeiro, os temas. Quando cogitei ler Byung-Chul Han foi por causa da crítica social que ele faz e porque alguns dos títulos de seus livros eram cativantes: A salvação do belo, Topologia da violência, Psicopolítica, No enxame: perspectivas do digital. Mas lendo Sociedade do cansaço vi que os títulos do livro e dos capítulos não salvam uma peça: o estilo do autor é péssimo, as chamadas cativantes são uma enganação, a abordagem é várias vezes medíocre. Tenham a bondade de escrever análises medíocres em linguajar medíocre. Não mascarem o medíocre sob estilos doutorais. 

Segundo, os livros do filósofo mezzo sul-coreano, mezzo alemão são fininhos. Há uma propensão das pessoas de querer ler livros finos não apenas pela falta de tempo – reformulo: falta de querer usar o tempo livre para priorizar leituras em vez de maratonas de séries e fuçadas nas redes sociais alheias –, mas porque assim se tem a impressão de alta cultura com rapidez. As gentes querem ser cultas, e têm pressa. Não leem volumes como Crime e castigo e O idiota, mas fazem questão de ler o curto Uma criatura dócil para sentir que podem dizer “Já li Dostoiésvki” e “Esse Dostoiévski de que tanto falam – já li” sem que a leitura de algo pequeno seja uma porta de entrada para leituras maiores. Livros grossos assustam esses tipos – a menos que trate de assunto banal –, e poder ler um filósofo considerado relevante, nesta época, e que escreve livretos de poucas páginas dá certo agasalho aos preguiçosos. Outrossim, um texto que não se compreende bem em inúmeros trechos passa a ser perdoado e até glorificado quando está numa encadernação pequena: você lê o livreto feio de Han (a estrutura de seu nome já está ocidentalizada e o sobrenome é Han), esforça-se e sai dele pensando “puxa, li um livro difícil, quão culto já sou?”. Há quem goste de ler livros finos porque assim sente que está lendo mais – “li cinco livros neste mês!” – e se o livro for rebuscadinho, então, o nariz já pode ser mais levantado. 

Byung-Chul Han pode ter boas intenções, mas precisa ser aconselhado. Seus trechos amaranhados não são claros nem agradáveis esteticamente. Que fique com esta advertência de Rápido e devagar: duas formas de pensar, do economista comportamental Daniel Kahneman: 

“Se deseja ser aceito como digno de crédito e inteligente, não use linguagem complicada onde uma linguagem simples daria conta do recado. Meu colega de Princeton, Danny Oppenheimer, refutou um mito predominante entre alunos acerca do vocabulário que os professores julgam mais impressionante. Em um artigo intitulado 'Consequências do vernáculo erudito utilizado a despeito da necessidade: problemas com o uso desnecessário de palavras longas', ele mostrou que expressar ideias familiares com linguagem pretensiosa é tomado como sinal de baixa inteligência e pouca credibilidade.” 

Espero que esse aconselhamento não caia nas mãos erradas. Mãos erradas leem isso, radicalizam, passam a escrever textos fracos de baixo vocabulário “para mostrar inteligência e clareza de ideias” e terminam dizendo que Guimarães Rosa na verdade era estúpido. Bom conhecimento sendo descoberto por pessoas despreparadas para ponderá-los – muitas vezes fatalistas adeptas do tudo ou nada – tem gerado aberrações há séculos. 


Mas não conclua que pós-modernistas cooptam e vencem apenas porque usam armadilhas de linguagem empregadas para laçar aqueles que não são modestos e sensatos o suficiente para cobrar desses espirais de ideias que traduzam o que disseram. Como comentei na postagem anterior deste blog, A paranoia lamentável de Djamila Ribeiro e seu clube, Djamila e Grada Kilomba são muito claras (no pun intended) em seus livros ruins quando afirmam que a ciência é uma narrativa, que essa narrativa é branca e que os ensaios opinativos que escrevem deveriam ser considerados ciência nas universidades, “senão é racismo e colonização de mulher negra”. Esses desatinos pós-modernos foram apresentados de forma que qualquer pessoa com o ensino primário consiga entender do que se trata. Mesmo assim, as duas movem rebanhos aparvalhados que não conseguem lidar com os discursos que recebem, numa demonstração patente de incompetência informacional. 

Antes de escrever aquela postagem fiz uma busca na internet para encontrar outras resenhas críticas ao livro Lugar de fala a fim de ver se eu chovia no molhado ou se tinha deixado passar alguma bizarrice particular que seria importante mencionar. Não encontrei nada de negativo elaborado. Tudo que obtive foi elogio atrás de elogio, inclusive em trabalhos apresentados em cursos de Direito (!), sem comentários censuradores ao fato de Djamila ser uma filósofa crítica da ciência que não faz a mínima ideia do que seja a ciência e sem reprovação ao contrassenso de parecer reivindicar que as universidades ofereçam especialização em mandinga assim como oferecem vexatórias especializações em homeopatia. Semanas depois Bruna Frascolla – outra filósofa que será lembrada mais adiante neste Compilado de parasitologia humana pela tentativa cômica de querer intelectualizar seu voto em Bolsonaro no segundo turno – escreveu para a Gazeta do Povo uma resenha aceitável do mesmo livro, mas não se deteve sobre essa que é uma das partes mais estapafúrdias do texto de Djamila e que não toma só uma página ou duas. “Erros graves na Djamila de Bruna”? Não, não quero criar uma manchete sensacionalista e presunçosa para depois apresentar um texto frouxo a demonstrar que o título exagerado da minha crítica foi um caça-clique de quem quer se elevar demais quando ainda está adolescendo mentalmente. É um erro a omissão, é estranho, mas não é tão grave. Talvez Bruna tenha apenas pulado partes do livro. 

Pós-modernos passarem impunes de degredo universitário mesmo sustentando didaticamente inúmeros disparates sobre a ciência mostra em que pé podre estamos. Com seu jargão pernóstico cooptam palermas que vivem sob a máxima “se não entendi nada, deve ser bom”, mas quando dizem com transparência que “a matemática é uma ciência branca que desconsidera os saberes negros, então precisa ser descolonizada” também conseguem adeptos. Se você ainda não está duplamente aterrorizado com esses delírios coletivos do nosso tempo, é hora de se beliscar e acordar do sono alienante. 


Além do método desarticulado, da linguagem abominável, do relativismo abusivo e até da decomposição do valor intrínseco às obras de arte – em outra postagem retomarei este ponto –, o pós-modernismo tem uma obsessão doentia pela construção social. Em síntese, o pós-moderno acredita que nascemos zerados e que tudo que trazemos de “ruim” se dá pela cultura: estereótipos, gênero, proteção de fronteiras. Elaboremos esses três tópicos. 

O ponto certo do duelo entre biologistas e culturalistas está no meio. Não porque “a virtude está no equilíbrio” como pesagem de sabedoria. Quando um indivíduo defende uma ideia descabida como “vamos queimar vivos todos os membros daquela tribo” e outro diz “vamos deixá-los em paz, não nos fizeram nada”, você não será um bom juiz ao sugerir o equilíbrio de “queimar só alguns, mas não vivos”. Ocorre que nós somos, de fato, um misto de biologia e cultura, que interagem, trocam informações inconscientemente e às vezes se avantajam uma sobre a outra. Se fizemos uma rivalidade maniqueísta entre essas duas forças a nos massacrar, proteger e elevar, isso é apenas mais uma faceta do nosso mergulho voluntário numa nova Idade das Trevas. 

*

Estereótipos 

Estereótipos podem ser danosos às vezes, mas há inúmeros casos em que fazem sentido e existe uma explicação biológica para nosso cérebro montar categorizações de pessoas, grupos e povos. Se você vai à França, interage com 10 franceses e 4 deles não sabiam nem responder as horas em inglês, seu cérebro já começará uma categorização com a etiqueta “franceses são péssimos em inglês”. 4 de 10 não é nem a maioria, mas é um número considerável a ponto de seus neurônios começarem a juntar os blocos nas caixas. Conheço pessoas que foram ao Sul do Brasil, passearam por dois dias e disseram que “nunca mais voltariam” porque tiveram más experiências com os olhares que certos sulistas reservam a visíveis forasteiros. Está certo fazer esse estereótipo do Sul inteiro por causa de dois dias de passeio? Sulistas hospitaleiros merecem ser colocados no mesmo saco dos sulistas colonos que veem negros como pessoas exóticas? Temos uma fama forte de fechados que não parece justa num primeiro momento. Ora, eu conheço inúmeros sulistas que são expansivos – expansivos até demais: daquele tipo que em público quer exibir alegria por qualquer coisa, mas chora no banho e vai dormir chorando – e questiono onde estava essa gente que não encontrou aquela gente viajante que saiu da nossa região falando que somos fechados. Quando uma ou duas pessoas saem de um lugar julgando as coisas da mesma forma, podemos dizer que é coincidência. Quando várias saem de lá opinando o mesmo, é algo a talvez se considerar. Já me convenci de que Salvador é uma cidade fedorenta depois de tantas pessoas voltarem de lá reclamando do urinol que são as ruas. Estou convencida de que no Sul, de fato, as pessoas tendem a ser mais fechadas e discriminatórias. São a maioria? Não sei. Mas o número é certamente notável a ponto de gerar um estereótipo que faz algum sentido para quem vai para lá com o olhar estrangeiro às vezes mais apurado que o olhar familiar. 

Estereótipos podem ser danosos às vezes, mas todos fazemos como atalho para poupar energia do nosso cérebro. Nordestinos reclamam que do Sudeste para baixo, no mínimo, dizem que eles são um povo só e inclusive acham que todo o Nordeste tem o mesmo sotaque, tanto é que existe a pateta imitação do sotaque único supostamente nordestino. Compreendo a constatação, mas não se vitimizem. Já perambulei por inúmeros restaurantes do Brasil pedindo batata frita e todo mundo me chama de gaúcha. Digo “bom dia” e me perguntam “ei, esse sotaque… você é gaúcha?”. Não falo como gaúcha nem na sinuosa melodia nem nos termos específicos do Rio Grande do Sul. Não falo “bah”, “que tri”, “mããs”, “tchê” ou “né-ã?”. Santa Catarina, meu estado, tem inúmeros sotaques que considero muito diferentes e o meu se tornou uma mistura do sotaque do meu pai paranaense, da minha mãe do interior catarinense com algo que veio de mim, mesmo. Mas quando ultrapasso o Paraná sou “do Sul” ou “gaúcha”. Meu estado natal nunca existe como possibilidade. Santa Catarina é uma ilusão no mapa. 


Mesmo os pós-modernos são amarrados a estereótipos e dependem deles como pretexto para revolucionar. Criam categorias como “homens, potenciais estupradores”, “homens machistas”, “brancos racistas”, “europeus racistas”, “burgueses odiosos”. A melhor forma de combater um adversário e convocar massa para combater junto é estereotipá-lo de forma tosca e clara, preferencialmente utilizando evidências anedóticas para fazer uma teoria do inimigo: “é óbvio que homens são todos machistas, Sheila, tenho uma tia que já foi estuprada e no meu trabalho há um cara que vive fazendo piadas que rebaixam as mulheres”. Uma catarinense ser tachada de gaúcha é firula perto do estrago desses estereótipos. Mas ai de você se tomar inspiração e fizer categorização de povos e grupos que os pós-modernos resolveram proteger: chineses, muçulmanos, pobres, gays. Não sofrerá só linchamento virtual. Poderá perder seu emprego. Uma mulher negra passeia pela sociedade declarando que “todos os brancos são racistas” e por causa do uso do crachá de oprimida perpétua nada acontece. Se você não angariou esse crachá, não tem os mesmos direitos. Pós-modernos não são, portanto, contra estereótipos. São só contra os estereótipos que fogem à sua ideologia. 

Você está sozinha à noite em um lugar ermo e percebe que alguém está acompanhando seus passos. Ao arriscar olhar para trás, encontra apenas uma mulher. Não se sente aliviada? Eu também me sentiria. Isso não é sinal de que todos os homens são um risco? Não. Homens andando sozinhos à noite em ruas ermas também ficam aliviados ao olhar para trás e perceber que a pessoa que acompanha seus passos é uma mulher. Homens serem um risco maior de violência e estupro na sociedade não nos dá o direito de propagar coisas graves como “todos os homens são potenciais estupradores” em contextos aleatórios, mesmo que tenhamos razão em temê-los mais do que às mulheres – estatisticamente, são muito mais violentos. Homens não violentos, que são a maioria, também temem a tendência violenta de uma parcela de seu gênero. A que serve serem estereotipados como igualmente agressivos? Caso sintam carência grupal e desejo de respeito, naturais a uma espécie social como o ser humano, talvez a estereotipagem irresponsável sirva para jogá-los no colo de uma direita desviada que gosta de cooptar os que foram expurgados por uma esquerda histérica, de pouca prudência e com mania febril de pureza. Quando essa esquerda expurga, aquela direita vibra abrindo os portões de seu galpão. 

*

Quem visita o Sul e chama seus habitantes de “fechados” faz isso porque usa o parâmetro de temperamento de seus locais de origem. A estereotipagem pode ser flexível. Os mesmos sulistas brasileiros chamados de fechados por pernambucanos podem visitar uma cidade como Munique e sair de lá dizendo “nossa, as pessoas eram tão fechadas”. E talvez os habitantes de Munique conheçam cidades do interior da Alemanha com pessoas consideradas mais fechadas ainda para o padrão deles. Quem me chama de “fechada” está usando algum parâmetro cultural pessoal do qual já acabei discordando, porque para a minha avaliação não me considero fechada, a menos que esteja tratando com idiotas ou chatos que definitivamente não merecem nenhuma abertura desnecessária. Fechados, na minha opinião, são meus vizinhos oriundos do interior do Paraná que foram para Blumenau e montaram pequenas comunidades colonas. Eles estão sempre espiando os outros pelas frestas das cortinas, qualquer pessoa que não se assemelhe a eles e esteja passando na rua recebe um olhar de desconfiança muito sério estilo “quem está deixando alienígenas vagabundearem por estas bandas?” e esse olhar acompanha o estrangeiro até que ele suma na esquina ou pare e desafie “afinal, o que está olhando tanto? Perdeu algo na minha cara?”. Montaram um gueto em Blumenau, quase só se relacionam entre si, suspeitam de quem não pertence a seu grupo e quando saem para “conhecer as novidades” com falsa simpatia é geralmente para recolher informações que levarão ao conhecimento do grupo enquanto fazem suas rodas de chimarrão (atenção, “do Sudeste para cima”: não são só os gaúchos que tomam chimarrão). 

Quando trabalhei por alguns meses em Campinas, tive uma colega simpática vinda da Bahia. Seu desejo era voltar para lá, e a explicação foi estranhíssima: “as pessoas daqui são muito isoladas e fechadas, a gente trabalha junto a semana inteira e quase não se encontra no final de semana para beber e descontrair”. Para o padrão dela, não encontrar os colegas de trabalho no final de semana “para beber e descontrair” com frequência era algo inaceitável, característico de “pessoas isoladas”, que inclusive a chateava. Isso é um despautério para a minha realidade pessoal. Colegas de trabalho são pessoas com as quais permaneço por circunstância laboral e durante a semana passo mais tempo acordada com colegas de trabalho – com os quais geralmente não tenho interesses comuns ou intimidade – do que com meu namorado, uma pessoa com a qual escolhi morar e que tem grande sintonia comigo. Meus poucos amigos, que tive a liberdade de selecionar, não me veem no mês nem por 5% do tempo que meus colegas de trabalho me veem. E aí as pessoas que já vejo a semana inteira – e que também não escolheram estar comigo a não ser por razões profissionais – ainda serão encontradas no final de semana sem que não tenhamos quase nada em comum a não ser a rotina de trabalho? Isso não é isolamento ou retração, é bom senso. 

Minha colega baiana voltou para sua terra levando um estereótipo de Campinas e região que não faz sentido – mas faz sentido na realidade da cultura dela. O que ela considera negativo na cultura abertíssima dela é considerado natural na minha. Também há casos em que as características que os outros pregam em você para estereotipá-lo negativamente dentro de um grupo passam a ser vistas como qualidades, como quando uma nação é conhecida pela arrogância e seus habitantes se vangloriam “de fato, somos arrogantes”. Ou como quando me acostumo a ser chamada de fechada e digo “obrigada” por não gostar do que essas mesmas pessoas consideram “ser aberto”. E há os outsiders: certamente na Bahia há quem preferiria levar uma vida de casulo em vez de tanto axé, certamente numa cidade tipicamente alemã do interior catarinense há quem preferiria ter intimidade com todo mundo e poder fazer festinhas todo final de semana com os colegas de trabalho. 


Fazemos mal em criar estereótipos? É impossível não criá-los. Em vez de alternar entre negar que existam e engendrá-los com má-fé para atender a uma linha ideológica, podemos nos sentar, analisá-los e tentar entender por que existem e se aqueles que são graves podem prejudicar uma categoria inteira para além do discurso tribal provocador. Muitos estereótipos existem e fazem sentido. Muitos existem e foram criados pela futilidade e pela estupidez. O estereótipo de que “índios são preguiçosos” não é apenas injusto: é burro. Quem insiste nele não está reclamando de ter contratado os serviços de uma diarista indígena que passa metade da jornada olhando para o horizonte na sacada, mas quer marcar uma posição de superioridade perante outra cultura que não lhe deve nada e não aderiu à sina, tantas vezes tola, de produzir para acumular dinheiro sob o colchão e tralhas. Neste caso o estereótipo não surge pela espontaneidade da observação de padrões, mas pela crueldade de querer rebaixar o que não é familiar, o que não se compreende – e nem há empenho em se compreender. 

Friso que o estereótipo não precisa surgir de uma maioria; basta que o padrão seja percebido em um número considerável de pessoas e que esse padrão não seja observado do local de onde viemos – ou que seja um padrão inesperado. Quando você faz viagens para outras cidades, estados e países, são necessários poucos dias para começar a criar um estereótipo em sua cabeça. Quando passa a participar de um novo grupo – esportivo, profissional, estudantil, etário, político –, não é preciso muito para perceber padrões nele. Alguns exemplos pessoais: 

1. Italianos são gabolas e tagarelas. Todos? Não. A maioria? Não sei. Mas é um número considerável que me fez perceber o padrão, seja observando italianos na Itália, italianos que montaram comércio em outros países europeus e descendentes de italianos do Sul e Sudeste brasileiros. Há uma necessidade de se vangloriar – e que não é um tipo, uma canastrice: é real e frequente – que talvez precise ser compreendida pensando no diagnóstico do complexo de inferioridade em alguns casos. 

2. Gaúchos são os baianos do Sul. Baianos são os cariocas do Nordeste. Cariocas são os gaúchos do Sudeste. Em suma, cada uma dessas figuras se acha “o melhor” de suas regiões, e não apenas no descanso da cabeça no travesseiro – eles propalam o quanto são melhores e gostam de encher o saco dos outros com isso. Santa Catarina está cheia de gaúchos que apreciam duas modalidades: zombar de catarinenses por não terem sua fibra e orgulho bairrista e papagaiar o quanto o Rio Grande do Sul é que é bom. Bem, vocês não estão obrigados a ficar em Santa Catarina; se o Rio Grande é tão bom, façam a gentileza de voltar para lá, aquela Pasárgada, e nos deixem em paz para torcer para times de futebol de São Paulo e Rio de Janeiro. 

2.1. Em relação a gaúchos, catarinenses se dividem em três: 1. Os que admiram e invejam o tribalismo gaúcho, o orgulho gaúcho e a gauchice toda; 2. Os indiferentes, geralmente sujeitos desligados que não sabem diferenciar uma mosca de um corvo; 3. Os incomodados com a petulância gaúcha, a bazófia gaúcha e o fato de gaúchos migrarem para outro estado com o objetivo principal de se exibir para os locais achando que são pavões no meio de rolinhas. 

3. Franceses cheiram muito mal nas axilas. Todos? Não. A maioria? Também não. Mas um número considerável. Quando uma atriz da Globo voltou de Paris chamando franceses de fedidos, foi xingada. Talvez ela tenha sido muito efusiva no menosprezo ao odor dos franceses. Talvez os xingadores apenas queriam fazer o velho ataque de manada da internet para ter justiçamentos virtuais em seus currículos. O fato é que às 10 horas da manhã do verão francês algumas pessoas bonitas e bem-vestidas que parecem ter acabado de sair de casa para ir ao trabalho já estão com cheiro fortíssimo de sovaco. A tolerância a odores também é cultural. Outros franceses no metrô não parecem se importar. 

4. Pessoas fora do padrão que detestam o fato de não estarem no padrão produzem mais amargura que pessoas comuns a respeito dos parâmetros para entrar no padrão. Então criam asco injustificado por quem é mais bonito, tentam prejudicar quem é mais padronizado e envolvem seus alvos em fofocas bem costuradas em cinismo. Quando o chefe contrata para a loja uma Anita Ekberg – alta, simétrica, bem-proporcionada, exalando feminilidade e sensualidade – que é incompetente para o trabalho, as vendedoras feias não têm raiva do chefe e seus critérios escusos, mas passam a destilar veneno contra Anita e maltratá-la em detalhes. Mulheres obesas têm um prazer vingativo em apontar que mulheres magras “não têm onde pegar”. Homens que ganham pouco se sentem alegres por um tempo quando percebem que em dado assunto são mais inteligentes que seus vizinhos bem-sucedidos financeiramente – e a alegria é maior quando podem mostrar o pequeno êxito a esses vizinhos: “hahaha, não vá me dizer que você comprou ações daquela empresa fuleira… era óbvio que aquilo era um barco furado… como você não percebeu?”. Mulheres que são ressentidas com o envelhecimento têm raiva e inveja de mulheres jovens. Dizem por aí que as idosas passam a ter uma leveza e uma liberdade de “finalmente se importar menos com o que os outros dizem e se amar como são”. Sim, as idosas. O perigo do ressentimento contra jovens e contra a vida vem das mulheres que odeiam envelhecer e estão entre 40 e 60 anos. 

5. Quando certas mulheres brancas que se tornam barangas (perdoem meu léxico) começam subitamente a desejar “negões”, percebe-se o racismo. Uma mulher envelhece, engorda muitos quilos, fica mais feia, está sozinha. E passa a dizer a todos que deseja “um negão”. Explico aos ingênuos: ciente de que perdeu pontos no baile porque não é mais lá muito bonita, essa mulher imagina que não conseguirá nada fazendo cortejo a homens que ela pensa “melhores” do que ela fisicamente, os “reis do baile”. E então recorre a um tipo físico que considera inferior e que “sem dúvida” vai se interessar por ela: aquele que ela chama de “negão”. Na cabeça dessa mulher, se é possível que alguém ainda se interesse por ela, esse alguém deve estar em descrédito social, não poderá exigir algo muito melhor e terá que se contentar com ela: é o homem negro de sua classe social ou de classe social mais baixa. De modo parecido, quando certos homens negros progridem na carreira e adquirem status, passam também a desejar mulheres brancas a seu lado. Pode não ser nada: pessoas de cores diferentes estão livres para se relacionar sem ter que participar da inquisição do apartheid. Mas em um número considerável de casos a gente tem alguma ponta de razão em se perguntar se um homem negro rico com uma mulher-troféu branca não a escolheu porque ele acha que crescer em riqueza e poder o permite requisitar mulheres de capital social mais alto. Da mesma forma, homens poderosos, brancos ou negros, costumam gostar de exibir top models como esposas, e não mulheres “mais corriqueiras”: novamente, capital social. As pessoas costumam se relacionar com quem elas conseguem obter, e não com os seus reais desejos. Não é incomum que homens que “vieram de baixo” com uma esposa, ao crescer e adquirir poder e dinheiro troquem de esposa, passando a se relacionar com uma mulher de capital social muito maior. Nada disso é bonito. Em muitos casos é até asqueroso. Mas a realidade é o que é, e não o que queremos que ela seja. 

6. Pedagogas fizeram Pedagogia em tese porque “gostam de crianças” e saem da faculdade do mesmo jeito que entraram: com vontade de cortar letras em EVA, cometendo erros de português básicos e sem terem lido a íntegra de obras de educadores importantes (leram as fotocópias de capítulos que os professores mandaram ler; leram o caderno de estudos às pressas para as provas). Todas elas são assim? Não, claro que não. A maioria? É provável. Quando você encontrar uma pedagoga que mantém uma conversa substancial sobre educação, conhece o mínimo aceitável da ortografia do português, não trata crianças como débeis e lê mais de dez livros inteiros por ano (não vale autoajuda), tire uma foto. Tire uma foto como prova de que essa pessoa existe e mostre aos outros quando precisar em jantares: 

– Sim, existe essa tal pedagoga eficiente e competente que vocês chamam de fantasia, tenho esta foto para provar, vejam. 
– Hm. Ela não conhece só Paulo Freire? 
– Não, ela leu as obras de inúmeros educadores e não fala sobre eles coisas que qualquer um pode encontrar na Wikipédia. 
– Não é possível, Carlos. 
– Sim, é possível. Tanto é possível que aí está ela, tirei uma foto. 
– Ah, Carlos, desculpe, eu não acredito. E isso aí é só uma foto, não prova nada. 
– Meu deus, mas eu vi com meus próprios olhos e conversei com ela! 
– Devia ser uma dessas papudas que conseguem forjar que entendem muito de um assunto quando não entendem nada. Deve ter puxado da memória umas falas das professoras da faculdade para reproduzir e enganar você. 
– Eu pensei isso! Aí tentei enredá-la em várias ciladas e ela se saiu muito bem! 
– Talvez você sonhou. 
– Mas o quê…? Ah, que diabos, me devolvam aqui essa foto. 

7. Bolsonaristas são asnos. Todos? Que cantem os grilos. 

Como podem ver, os estereótipos podem ser engraçados, engraçados/provocativos, feios – nem por isso infundados – e danosos. Mesmo que criemos vários deles o tempo todo em nossos cérebros à procura de padrões e ansiosos por categorizações, é importante que os usemos como devemos usar as piadas: com cuidado, sabendo que em determinados lugares, diante de algumas pessoas e sob dados contextos é apenas insensato externá-los. Ricky Gervais é engraçado em seus stand-ups? Eu acho. Mas consideraria inadequado e ofensivo se ele fizesse algumas das piadas de seu show na ala do câncer de um hospital ou num evento de arrecadação de cestas básicas. Da mesma forma, ao conhecer uma pedagoga não vou perguntando “e aí, que tal Anísio Teixeira? Não sabe falar sobre ele além de três frases, não é? Não admira, a Pedagogia é uma graduação lamentável que forma quem mal sabe ler e coloca essas pessoas para ensinar crianças a ler”. Uma má pedagoga não merece falta de educação de graça da minha parte em nosso primeiro encontro. Uma boa pedagoga não merece ser aviltada e lembrada de que escolheu uma área essencial com um estereótipo ruim que só faz sentido por causa do perfil de tantas de suas colegas. 

Algo bom pode advir de um estereótipo pernicioso? É possível. Quando Gabriel, O Pensador explodiu com sua música “Lôraburra”, talvez loiras ofendidas nas boates possam ter tentado ser mais inteligentes para combater o estereótipo que as chacoteava. Ao descobrir que sua área é vítima de escárnio, uma pedagoga preguiçosa pode dizer para si “é agora que fico sem ver TV por uma semana e vou estudar mais para provar para eles que estavam errados!”. Quando brasileiros somos vistos no exterior com desconfiança por temerem nossa estereotipada malandragem, podemos querer explicitar ainda mais nossa honestidade para mostrar que os anfitriões estão errados: “hi again, the change you just gave me wasn't right, it was more than I should get, I'm giving it back, nice to meet you, I'm from Brazil”. 


Gênero 

Não me preocupo com a explosão de mudanças de gênero, apesar de achar evidente que muitos dos transformados que alegam “não se sentirem adequados com o gênero imposto conforme o sexo de nascimento” estão apenas dançando um hit parade. Na verdade a salutar ojeriza aos padrões de gênero para todos aconteceria se parássemos de nos preocupar se certas cores, modelagens, esportes e profissões são de um gênero ou outro e aproveitássemos a liberdade com mais entrega, já que a vida é só uma e valorizá-la somente quando se está preso numa cama de hospital é deprimente. Mulheres que sempre usaram vestido, cabelo longo e batom que resolvem “assumir outro gênero” e passam a usar calças largas, cabelo raspado e voz grossa tendem a estar tão bitoladas nos pacotes de gênero quanto quem é cis convicto. Não é necessária essa conversão completa para a imensa maioria de nós, que não temos uma real disforia de gênero. Podemos misturar nossos gostos sem temer imposições mesquinhas fortemente marcadas em tabelas. 

Fui uma criança e adolescente quase bigênero. Sempre pendi mais para o que é determinado como gênero feminino, mas não hesitava em aproveitar coisas do que chamavam “para meninos”. Passei muitos anos detestando a cor rosa, ficava chateada quando me davam bonecas de presente; gostava de tênis, roupas largas, músicas consideradas “de menino” e O mundo de Beakman; era constantemente chamada a ter “modos de menina”. Mas ao mesmo tempo adorava bichos de pelúcia, papelarias estavam entre meus lugares favoritos, ficava muito feliz quando minha mãe fazia trancinhas no meu cabelo, apreciava estampas floridas e meu ideal de casa era a casa da Sakura, do anime Sakura Card Captors. Também tive fases mais para um gênero ou mais para outro, a ponto de chegar a ser confundida com um menino. E penso: felizmente meus pais não eram pós-modernos. “Não está levando a pós-modernidade longe demais como culpada de modismos que não prestam?” Não estou. Pós-modernos têm um entendimento equivocado de gênero. E por muito pouco acabam cometendo crimes de mudança de sexo em crianças. 

Imagine que estou em minha pré-adolescência numa fase “meu jogo favorito é taco na rua e por favor não me dê nada que seja cor-de-rosa”. Se meus pais são pós-modernos, podem achar que estou me revoltando contra o gênero que representa meu sexo de nascença e que estou dando sinais de querer mudar de gênero. Por “compaixão”, eles começam a me tratar como um menino e a incentivar que eu radicalize meu gosto por coisas “de menino”. Sem entender muito bem o que está acontecendo, sigo a linha. Daqui a pouco estão me perguntando se estou incomodada com os seios que estão crescendo, pois recusei o primeiro sutiã que ganhei para segurá-los. Quando vejo um “Mike” na TV e elogio “haha, é legal esse nome: Mike” vão conjecturar se estou fazendo com que percebam que é o nome com o qual gostaria de ser tratada. E mais além vão me levar a um psicólogo para averiguar se sou transgênero e se não quero tomar hormônios para fazer uma transição não só de gênero, mas sexual. Isso é o plot de um filme de terror? Parece, e alguém poderia aproveitá-lo para fazer uma esquete contra desvarios pós-modernos. Camille Paglia está certa quando diz que mudanças de sexo em crianças por meio de tratamento hormonal são criminosas. Uma criança é incapaz de tomar centenas de decisões sobre si mesma – segurança, alimentação, brincadeiras, escolha de pessoas confiáveis, valores –, mas é legítimo que deva ter o sexo trocado por bombas hormonais porque é alguém com pênis que gosta de usar vestidos de bailarina? Isso é um despropósito. E é um crime. O menino quer usar vestidos? Que use, não há nenhum gene que determina que na parte biológica da correspondência de gênero – que não é pura construção social – os homens devem usar calças e as mulheres devem usar saias. Mas incentivar que essa criança adote o pacote completo do outro gênero e chegar ao ponto de cogitar que deva fazer tratamento hormonal é precipitado e absurdo. Pais irresponsáveis podem cometer um erro gigantesco por suas ambições pós-modernas, e é um erro que atuará num sujeito mal formado, altamente influenciável, refém desse tipo de paternidade prafrentex. Há pais tão delirantes na vontade de esquerdismo extremo com doses cavalares de pós-modernismo que parecem torcer para que os filhos sejam transgênero ou gays, porque em seus círculos isso permite ganhar status. 

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Uma parte do nosso comportamento baseado em gênero é biológico. Outra parte é cultural. É cultural que meninos estejam associados a dinossauros e meninas estejam associadas a vários penteados de cabelo. Essa mesma cultura pode abafar características de gênero biológicas: é possível transformar um menino em uma menina pelo adestramento cultural. Mas isso é benéfico? E até que ponto devemos fazer isso? 

Não sou uma advogada da natureza. Acredito que a civilização nos permitiu corrigir o que dentro da nossa moral são danos do determinismo biológico: ditames e princípios que causam sofrimento desnecessário. Na natureza de animais sociais como os macacos há estupro, assassinato – se é que podemos dizer que “um macaco assassinou o outro”, mas peço licença para o uso analógico do termo –, disputa pelo poder, ditaduras. Quando olhamos macacos tendo comportamentos que em nossa cultura consideramos perversos, podemos nos assustar ao perceber o que a natureza permite quando deixada por si mesma. Ao mesmo tempo, parece pouco inteligente negá-la e querer construir pessoas do zero pelo adestramento cultural, que é o que pós-modernos defendem que possa ser feito em seu projeto fascista de mundo revolucionado. Que direito tem alguém de querer apagar completamente a natureza de outra pessoa para instalar seu programa de adestramento que sequer passou pelo crivo do tempo? 

Se hormônios e genética moldam corpos de homens e mulheres de forma tão díspar, por que não moldariam também seus comportamentos? Se existem receitas genéticas que constroem animais da mesma espécie de modo diverso quando são fêmeas ou machos – as galinhas não se comportam como os galos, os leões não são iguais às leoas –, por que conosco isso seria diferente? Pós-modernos não têm a missão apenas de elevar a cultura. Eles estão numa cruzada de negação da natureza. E estão unidos a uma vertente egocêntrica do pensamento, dominante em tantas áreas, que trata o ser humano como um ser à parte nas regras naturais, como se fôssemos imensamente diferentes dos outros animais, não estivéssemos sujeitos aos mesmos determinismos da natureza aos quais muitos animais se dobram e não dividíssemos um passado comum com eles. Em Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas, do físico Leonard Mlodinow, há estudos sobre o comportamento humano diante de forças subliminares que alteram, sem que percebamos, nosso modo de pensar. Mlodinow parece considerar animais como categoria que merece ser explorada para quaisquer estudos humanos – para estudar diagonalmente os comportamentos do homem, muitos cientistas submetem animais a experimentos cruéis com vistas a traçar certas parecenças –, o que considero antiético e sádico, mas excetuando isso seu livro se presta com satisfação a mostrar que somos inúmeras vezes guiados por um inconsciente animalesco que pouco controlamos: 

“[…] embora o comportamento social humano seja muito mais complexo que o de outros animais, as raízes evolutivas dos nossos comportamentos podem ser encontradas nesses animais, e […] é possível aprender alguma coisa sobre nós mesmos ao estudá-los.” 

Essa ponderação foi inserida no texto para elucidar por que num livro sobre a ação do inconsciente humano há tantos exemplos retirados do mundo animal. Os animais se comportam respondendo a certas ordens inconscientes cujas raízes evolutivas também levaram ao homem. Se pós-modernos puderem ao menos admitir que existe a evolução das espécies, logo depois será urgente chamá-los à incoerência: eles acreditam que todos os animais têm um ancestral comum, que evoluímos de uma longuíssima linha completamente animal por milhões de anos, que em nossa animalidade ancestral éramos manipulados pelas regras da natureza e de repente, zás!, sujeitos guiados pela natureza em seus comportamentos deram à luz filhos que foram se afastando tanto dessa natureza que chegaram ao ponto de gerar, lá adiante, um pequeno e puro indivíduo zerado de disciplinamento biológico e à espera do adestramento cultural? Como é que o ser humano, animal que descende de animais e que com eles ainda partilha diversas semelhanças, passou por essa drástica evolução de conseguir se tornar um sujeito que só poderá agir impulsionado pela cultura, sem disciplinamento biológico? Isso é bizarro e não faz nenhum sentido, mas tenho certeza de que pós-modernos se empenhariam em arranjar uma justificação espalhafatosa que fizesse seus lavados cerebrais balançarem a cabeça e “uhum, uhum, está vendo?, tem uma boa explicação”. 

Quando entrevistado pela Superinteressante, o zoólogo Desmond Morris, autor do best-seller O macaco nu, respondeu à suave provocação “Seus livros são acusados de ser escritos a partir de um ponto de vista excessivamente masculino…”: 

“Não concordo com essa afirmação. Não sou machista. Sou um observador do ser humano em sua realidade cotidiana. Por outro lado, sou zoólogo. Em todos os meus livros, busco despojar o ser humano da sua arrogância – para que ele conheça suas origens. Essa é a a minha forma de contribuir para o conhecimento de nossa espécie.” 

Esse é o nível de acusação para qualquer cientista que conclua algo não “igualitário” sobre as mulheres na natureza. Além de sermos arrogantes parecendo acreditar que nossa espécie é de uma origem evolutiva diversa dos outros animais, cientistas que se propõem a narrar fatos observáveis a ferir vaidades têm que se explicar por não fazer uma ciência a dizer que “homens e mulheres são iguais na biologia, é só a cultura que os aparta”. Não estou entrando no barco rumo a qualquer lugar com Morris, que já teve algumas hipóteses superadas, mas quem está bem informado sobre a influência esquerdista e pós-modernista no ambiente científico sabe de pesquisadores apagados ou diminuídos porque “ousaram” não tirar conclusões politicamente corretas em seus estudos. 

No livro A estranha ordem das coisas: as origens biológicas dos sentimentos e da cultura, do neurologista português António Damásio – mais conhecido pela obra O erro de Descartes –, há esta passagem: 

“Fenômenos biológicos podem impelir e moldar eventos que se tornam fenômenos culturais, e devem ter feito isso também por ocasião do nascimento de culturas, via interação de afeto e razão, em circunstâncias específicas definidas pelos indivíduos, pelos grupos, sua localização e seu passado etc. A intervenção do afeto não se limitou a um motivo inicial. Ela foi recorrente, monitorou o processo, continuou a intervir no futuro de muitas invenções culturais, como requerem as intermináveis negociações entre afeto e razão. Contudo, os fenômenos biológicos críticos – sentimento e intelecto em mentes culturais – são apenas parte da história. A seleção cultural precisa ser considerada na equação, e para isso necessitamos de conhecimentos de história, geografia e sociologia, entre muitas outras disciplinas. Ao mesmo tempo, precisamos reconhecer que as adaptações e as faculdades usadas por mentes culturais foram resultado de seleção natural e transmissão genética.” 

Nem tudo é o que parece, e uma coisa tremendamente improvável pode ser verdade. Para o olho leigo, observar a mudança de dia em noite faz parecer óbvio que o Sol se move ao redor da Terra, dando uma volta nela em 24 horas. A evolução das espécies, que atua por meio da seleção natural, também parece improvável para nossa curta existência e nossa mente limitada: como é que a natureza, sem designer, conseguiu fazer com que em milhões de anos um mundo com organismos simples conseguisse desenvolver seres complexos como o polvo, o morcego e Murilo Mendes? Tudo isso, entretanto, não é uma exaltação do improvável, termo que está sendo usado aqui no sentido de “que não tem probabilidade de se realizar, duvidoso, incerto” e não no sentido de “que não se pode provar”, porque o giro da Terra ao redor do Sol e a evolução das espécies já são coisas provadas. Fora essas exceções – e são exceções de porte –, o improvável é provavelmente errado. Na falta de conhecimentos certificados sobre a alteração da natureza, é necessário conceber inferências a partir das poucas informações que se tem e pensar no possível descarte do improvável. Faz sentido que a cultura tenha surgido em nossos ancestrais remotos pela determinação de um indivíduo, sem influência da natureza? Não é o que Damásio pensa, não é o que parece conforme os dados que já possuímos. Essa hipótese de extremo culturalismo é improvável tanto no sentido de “duvidoso” quanto no sentido de que não se pode provar, ao menos por enquanto. O que sabemos é que a cultura pode ser comumente explicada pela natureza e justificada pela natureza. E uma vez que se forma ela também se torna passível de seleção. Às vezes você se pergunta “por que isso é assim na minha cultura?”. Um pós-moderno que passava na rua e ouviu seu pensamento voa para tocar sua campainha e responde “porque alguém malvado, classista e patriarcal decidiu, um dia, que isso fosse assim na sua cultura”. Essa resposta é acertada? Muitas vezes não. Se nós saímos da condição de animais fortemente manipulados pela natureza e evoluímos para a condição de animais culturais – e ainda um bocado reféns da natureza –, por que nessa transição a nossa natureza não teria influenciado a criação da nossa cultura? Por que pós-modernos preferem furar os próprios olhos a enxergar que algumas culturas que trazemos há muito tempo têm uma explicação natural, aprecie-se ou não o que isso provoque? 

Defender tal ideia não é defender que temos que ceder à natureza ou a uma cultura que parece calcada em explicação natural. Se às mulheres é destinada grande parte da responsabilidade no cuidado e na educação dos filhos, e isso tem uma ligação muito forte na natureza – algo que percebemos não apenas observando como são os corpos das mulheres e como agem os hormônios que as conectam a seus rebentos, mas prestando atenção ao comportamento da maioria das fêmeas do mundo animal –, nossa cultura já exigiu uma participação maior dos homens nessa tarefa e não há problema em cobrar que eles se envolvam de fato com o ambiente familiar. Para isso, não é preciso que homens se igualem às mulheres. Quem tentar talvez viva com uma coceira interna da natureza sussurrando “você é diferente, por que está tentando ser exatamente como ela?, você é diferente, isso é uma coisa que nós faríamos diferente”. Mas sem negar a realidade e respeitando algumas diferenças naturais entre os gêneros, a renovação cultural está aí para poder tentar proporcionar uma vida melhor a todos, caso a empreitada seja aceita. 

Ao mesmo tempo existe uma campanha pós-moderna de execrar a cultura tal como ela é, como se o correto a ser feito fosse subverter toda a cultura em busca de um novo ideal de homens e mulheres. Com certo espírito conservador, rejeito esse decreto. Sempre patrocinei a ideia antropológica de que devemos familiarizar o estranho e estranhar o familiar, de que é uma estreiteza muito grande se prender a normas sociais prejudiciais que não estão bem justificadas ou só vigoram “porque sempre foi assim, é uma tradição”. Mas isso não quer dizer que desejo um mundo de cabeça para baixo ou que devemos acordar contestando e ir dormir contestando cada microcoisa que nos afeta. Estou muito bem, obrigada, com o fato de não ter precisado me alistar no exército porque sou mulher. Estaria muito bem, também, com a ideia de que se eu tivesse um filho seria eu a ter seis meses de licença do trabalho, e não meu namorado. Em profissões arriscadas como bombeiro, construtor civil e policial que vai com fuzil combater o tráfico, acho ótimo que minha cultura não me pressionou a considerar essas opções como igualmente válidas tanto para homens quanto para mulheres. 

Também gosto de coisas culturais atribuídas a meu gênero e sem aparente explicação na natureza, como usar batom, fazer trabalhos manuais e colocar certos adereços no cabelo. Construções sociais, e eu gosto delas. O que desgosto da cultura atribuída a meu gênero? A supremacia da beleza perante outros valores – que leva até hoje homens inteligentes a acharem normalíssimo se casar com mulheres burrinhas desde que lindas e joviais –, a cultura da manicure, da depilação total sofrida e dos salões de beleza toda semana, a tolice tratada como “feminilidade”, a modelagem de certas roupas, a aceitação alienada de uma aberração como o salto alto, a discriminação de mulheres em profissões consideradas “masculinas”, a importunação sobre dever querer filhos e o desprezo, claro ou tácito, a mulheres que não aderiram ao combo “feminino” – como se no século XXI o objetivo de uma mulher ainda devesse ser modular voz, postura, trejeitos e gostos para conquistar homens; como se, apesar de a natureza nos empurrar para arranjar o melhor parceiro possível e procriar com ele, não tivéssemos criado a civilização a oferecer inúmeras outras alternativas não-decorativas como propósito de vida para uma mulher. 

O que eu gosto e desgosto representam normas? É claro que não, eu não normatizo nada. Se um homem quer usar batom ou se uma mulher quer carregar um fuzil para combater o tráfico num morro, que sejam livres. Só peço que entendam que muitas coisas da nossa cultura têm raízes na natureza, que parte disso pode ser modificado por uma “seleção cultural” – sempre torço para que isso seja feito com sabedoria, porque imagine se quem vence uma seleção cultural mundial é o Irã, o Afeganistão ou a Coreia do Norte – e que nem tudo que é criado na nossa cultura precisa ser subvertido para exibir uma rebeldia pós-moderna. Há coisas a questionar em nossa cultura, e há também coisas a aceitar. 

Quando uma pessoa se rebela contra um valor cultural, podemos num primeiro instante não saber muito bem se estamos diante de um contestador de espírito antropológico e visão aberta, um louco ou um imbecil. Há culturas que assam e comem a carne dos parentes mortos. Se alguém fizer isso no Brasil não-indígena, será considerado caso psiquiátrico passível de internação ou correrá o risco de ser preso. Pareceria correto já que em outra cultura isso está normalizado e, na verdade, ninguém sai ferido? Não sei, o caso teria que ser visto de perto para averiguarmos se se trata de um contestador de espírito antropológico e visão aberta, um louco ou um imbecil. Já pais que se negam a nomear seus bebês para “não impôr nomes marcados pelo gênero” esperando que eles cresçam e decidam se querem ser João ou Maria, pais pós-modernos que ao descobrir no ultrassom que terão um menino já começam a montar um quarto misto só que mais “de menina” com temática de princesas e unicórnios para marcar posição ideológica contra as definições de gênero, jovens que acham natural fazer uma apresentação de golden shower na rua e mulheres que fazem receitas com sangue menstrual geralmente são só imbecis. 

Também são imbecis os pais que se negam a comprar brinquedos “do outro gênero” solicitados por seus filhos por temerem não criar meninas princesas e meninos cavaleiros, os que acham que a menstruação é assunto nojento que deve ser escondido e o máximo que se deve fazer referência a ele é com o sutil “naqueles dias”, os que se incomodam quando duas pessoas do mesmo sexo estão fazendo carinho uma na outra em público, os que desdenham quem não vê mérito e virtude nos valores do trabalho bitolado e acúmulo de bens materiais. 


Homens e mulheres têm padrões de beleza naturais para o sexo oposto, mas está claro que na espécie humana as mulheres é que fazem o papel de galos e pavões a exibir seus dotes estéticos. Esse show felizmente pode ser atenuado pela cultura, que nos faz ver outros predicados em quem cortejamos, mas ainda assim parece difícil que ela sozinha consiga apagar todo o efeito da natureza. É por isso que certo padrão de beleza similar, com algumas margens, pode ser percebido em etnias diferentes. Descobrir que numa tribo isolada de poucos milhares de pessoas o padrão de beleza da mulher é o muito gordo e o padrão de beleza do homem é o muito baixo diz algo sobre as interessantes possibilidades das formações culturais. O que eu me pergunto é como, no ímpeto de se colocar na roda como “também muito bonitas”, pessoas fora do padrão e das margens do padrão acham razoável se apegar com tanta força a esses casos insulados, e não para dizer “vejam, existe variação de beleza entre culturas; devemos dar tanto valor assim à beleza?”, mas para defender “vejam, existe variação de beleza entre culturas; portanto me considerem bonita como aquela tribo isolada me consideraria bonita”. 

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Proteção de fronteiras 

Já fui a festivais de música punk que defendiam “um mundo sem fronteiras” porque “nenhum ser humano é ilegal”. Eu estava lá pela música, não pelas ideias. “Love punk, hate punks” entrará para a lista de estampas de futuras camisetas, junto com “George Martin, quinto beatle” e “Se sou idiota com você é porque você foi idiota primeiro”. Alexandre Versignassi, diretor de redação da revista Superinteressante, escreveu um editorial defendendo a extinção de fronteiras, mostrando que pessoas inteligentes em algumas coisas têm apagões completos a respeito de outras, às vezes para entrar na roupagem de humanistas do futuro. Mas quem pleiteia a abolição de fronteiras parece não entender de natureza, de cultura e até de matemática. 

Imaginem que montei uma comunidade de 500 pessoas num condomínio fechado. Os membros da minha comunidade concordam todos em comer apenas alimentos veganos ou ovos que nossas galinhas resgatadas puseram, reciclar ao máximo o lixo produzido na comunidade, fazer rodízio para cuidar da nossa horta, não ouvir funk ou sertanejo sem fones de ouvido, ajudar outros membros que estejam com problemas financeiros porque não conseguem emprego, respeitar certas diversidades. Toda sexta-feira à noite fazemos uma rave no ginásio da comunidade e nas tardes de domingo fazemos um grande encontro entre as famílias, onde há café, salgados, bolos, música e jogos. Temos regras rígidas? Temos. Mas não são contra as leis do país em que vivemos, nem são imorais. Todo mundo que aceitou morar na comunidade sabia delas e achou que valia a pena segui-las. Um dia a Sra. Francisca vem até nós na assembleia e diz: “meu cunhado virá morar comigo com seus dois filhos”. Ela não pede, ela não diz se o cunhado sabe das regras da nossa comunidade, ela não comenta o que cunhado e filhos têm a oferecer. Dizemos: “olha, Sra. Francisca, já temos pessoas em número suficiente aqui dentro e ainda há quatro grávidas, mas se seu cunhado estiver mesmo disposto a seguir nosso estilo de vida e contribuir com a comunidade...”. “Por que ele não contribuiria? Isso é preconceito!”, ela retruca. Não queremos parecer preconceituosos, uma acusação tão severa, então deixamos que o cunhado venha sem mais investigações. O cunhado vem. É churrasqueiro. Compra copos de plástico descartáveis porque tem preguiça de lavar as xícaras que poderia usar e não vê importância em reduzir a criação de lixo. Tem uma daquelas caminhonetes gigantes que, se adquirissem título de eleitor, votariam no Bolsonaro. Todas as noites as brincadeiras de seus filhos envolvem gritos que não deixam nossos idosos dormirem. Ele quis abafar a música da nossa rave colocando sertanejo universitário para tocar em sua caminhonete na porta do ginásio, achando que seria engraçado. No dia em que ele devia cuidar da horta, arranjou algo para fazer fora da comunidade e voltou muito tarde. Quando foi ao café das famílias no domingo, não levou nada, colocou o dedo na cara dos outros enquanto falava com a boca cheia, ocupou a cadeira de uma idosa e mais tarde trouxe um pote de plástico para levar alguns quitutes para casa “e não ter que fazer almoço amanhã”. Um menino reportou a seu pai que encontrou o sujeito na calçada e ele o chamou de “veadinho passivo” e depois saiu gargalhando. Esse indivíduo de fora piora a entropia da nossa comunidade, desrespeita nossos moradores, desrespeita nossas regras, não contribui com nada e ainda temos que aguentá-lo para não sermos considerados “preconceituosos”? 

É mais fácil receber estrangeiros quando estamos falando não de uma comunidade como a que idealizei, mas de um país. Parece que os estrangeiros se diluem e não temos que vê-los na mesa de jantar ou sentados na nossa calçada. Alguns têm uma cultura diferente que não impacta tanto com a nossa, contribuem com o comércio local, respeitam nosso modo de vida. Eles vêm aos poucos e vão se adaptando ao país, que também tenta se adaptar a eles. O mesmo não se pode dizer quando eles vêm em grande quantidade, formam guetos, não se adaptam às nossas regras explícitas ou implícitas, ofendem nossa cultura, rejeitam os direitos que angariamos para mulheres e homossexuais e ainda têm apreço pela alta natalidade. Se eles estão em grande quantidade, reproduzem-se muito mais do que nós e não mostram interesse nenhum em aderir a pontos cruciais da nossa cultura, em poucas décadas podem ser maioria, entrar em peso para a política e reverter os direitos que conseguimos para as minorias de nosso país. As minorias, que apoiaram com febre a vinda massiva dessas pessoas que causaram imenso choque cultural, perderão seus direitos, olharão para trás e tentarão entender o que aconteceu. Olhando para trás, verão que estavam chamando de racistas classistas xenófobos não só os caipiras que repudiam qualquer grupo que não se assemelhe ao deles, mas também quem dizia “temos que ir com calma, esse é um encontro entre países de hábitos muito diferentes, temos que ajudar as pessoas, mas com cautela para não prejudicar a cultura daqui que levamos tanto tempo para construir”. 

Não preciso explicar com nomes claros do que estou falando. Vocês já entenderam. Somos grupais – como tantas espécies de animais –, muitas vezes há motivo para nos fecharmos em grupos e quando pessoas de fora do grupo querem entrar nele, mas sem oferecer adaptação e contribuição em retorno, podemos nos sentir ameaçados. Se a simples menção a esse problema complicado parece sempre algo xenófobo e direitista, é só porque você quer em seu sonho colorido de fanfarronice da bondade. Mesmo os habitantes de Bacurau não aceitariam a intrusão de alguém que não respeita seu modo progressista de viver. 

Pode ser ridículo que um sujeito não aceite seu vizinho estrangeiro porque não gosta do seu sotaque ou do cheiro que a sua comida exala, mas não comparemos coisas que não são comparáveis. Certamente há racistas e xenófobos que se opõem à imigração por razões esdrúxulas, mas também existe quem tema a imigração porque a cultura dos imigrantes é considerada retrógrada e desrespeitosa comparada com os valores apreciados pela maioria dos habitantes da cultura local. Agora não temos mais o direito de “não gostar de outras culturas” porque isso é inadequado? Mas quais os motivos levantados para não se gostar de outra cultura? Temos que achar, pós-modernamente, que todas as culturas são igualmente boas porque não existe um critério universal maior para dizer o que é bom e o que não é dentro das manifestações culturais? Se cada cultura “é só uma narrativa”, que direito tem um esquerdista de querer minar a cultura machista de uma parcela da população brasileira enquanto contemporiza o machismo em locais que elegeu para proteger, como alguns países muçulmanos? “Ah, mas aí estamos querendo mudar uma manifestação cultural perniciosa dentro da nossa cultura, e não da cultura distante alheia.” Nossa cultura? O Brasil não tem uma cultura, tem várias, e por acaso algumas pessoas partilham certas manifestações dentro dessas várias culturas. Quando você interfere na cultura machista do interior de Goiás vindo de uma mentalidade aberta construída em São Paulo, pode estar se intrometendo em outra cultura dentro de um mesmo país. Que reducionismo é esse que determinou que culturas únicas estão encerradas dentro de cada país ou região? 

Visões de mundo que se obrigam a tortuosidades argumentativas para fazer as coisas se encaixarem em seu simplismo e em sua defesa de critérios trôpegos de grupos e identidades não têm lógica – são visões de mundo de seitas que se baseiam na fé, e não na racionalidade, para manter os adeptos unidos. Já que para pós-modernos os valores são fluidos – mas não muito: quando eles decidem que uma visão é a verdade, essa visão é a verdade –, também podemos brincar com eles usando seu próprio jogo fantástico: 

– O imperialismo é ruim. 
– Quem disse? 
– Eu estou dizendo. O imperialismo é ruim porque massacra outros países. 
– Parece apenas sua visão de mundo. A cultura imperialista é uma cultura como as outras. 
– Como assim, “é uma cultura como as outras”? A cultura imperialista destrói a política e a cultura dos países dominados. Isso é errado. 
– “Errado” é um valor. Mas quem garante que é um valor correto para o imperialismo? 
– Não estou entendendo. Você é a favor do imperialismo? 
– Não sou a favor, nem sou contra. Afinal, quem pode definir que a cultura imperialista é ruim num mundo repleto de narrativas? 
– A verdade define. E a verdade é que países imperialistas causam muitos males aos países dominados. Desmantelam suas formações políticas, proíbem suas culturas… 
– Mas o que é a verdade? Não há uma verdade. Há verdades, e essas verdades são relativas. Na verdade dos países imperialistas, não dominar países mais fracos passíveis de dominação é um mal que impede o crescimento dos países imperialistas. Eles estão vivendo a verdade deles. 
– … 

É cômodo dizer que a Europa deve receber todos os estrangeiros que quiserem ir para lá quando estamos falando isso dos nossos sofás ou de dentro da nossa seita que romantiza povos inteiros conforme a ideologia que pregamos. Quando o nosso grupo é afetado por estrangeiros intrusos, aí talvez possamos entender como funcionam os desejos humanos de montar comunidades e protegê-las tanto de outras regras quanto da extinção. 

Quem defende um mundo sem fronteiras esquece que as fronteiras nos protegem de ditadores, genocidas e pessoas medievais cercadas em um território. Quem defende esse mundo acha que “o bem vencerá”, como se num mundo sem fronteiras os países que hoje são poderosos não pudessem usar sua expertise e seu povo para dominar o mundo inteiro. Pense num país machista que trata mulheres como capachos e executa homossexuais. Dentro dessa cultura, as famílias devem ter o máximo de filhos que conseguirem. Um dia, por decisões nefelibatas irresponsáveis, todos os líderes do mundo decidem acabar com suas fronteiras. Não quero agora me debruçar sobre o completo caos que isso causaria, apesar de evidente, porque meu ponto é outro. As famílias daquele país machista que executa homossexuais continuarão com suas culturas, e continuarão procriando. Antes, enquanto eles estavam encerrados em fronteiras, eram obrigados a se manter em um território que limitava tanto o alcance de seus desejos quanto o espaço onde sua prole poderia morar. Agora eles têm o mundo. Se chegarem a um número alto, podem ter domínio cultural – e numérico – para aos poucos ter poder sobre os outros e sobre os territórios. “Não há fronteiras”, diz um rapaz que está tentando entrar num território onde eles se instalaram. “Aqui nós estamos, você não é um de nós e não vai entrar aqui”, eles objetam. Dado como somos e como são os grupos, num mundo sem fronteiras logo haveria novas fronteiras, e possivelmente piores. Que poder teria uma Finlândia, país bonito, organizado, feliz e igualitário, para ser o guia ou o modelo num mundo sem fronteiras? 

É ilusório achar que os ditadores de hoje abririam mão de suas terras e seus povos para dominarem sobre ninguém. Ou que eles manteriam os territórios sem fronteiras e isso teria apenas consequências econômicas. É estupidez achar que prevaleceria o que há de melhor nesse mundo sem divisas: prevaleceria o pior, porque o pior tem força, tem desejos de dominação e ainda tem, muitas vezes, o forte desejo da natureza de “deixar a maior prole possível”. Quem está convicto de que sua cultura é a melhor, “a escolhida”, não vai permitir que num mundo sem fronteiras, presumidamente tornado um imenso caldeirão multicultural, a sua visão perca o domínio que tinha quando estava fechada naquele imenso país populoso. Repito: querer um mundo sem fronteiras é desconhecer a natureza humana animal, é desconhecer como se organizam as culturas, é desconhecer cálculos de progressão populacional. E é desconhecer que os princípios darwinistas não são fósseis históricos, pois ainda somos indivíduos, famílias e grupos a competir não apenas por recursos, mas por supremacia cultural. 

No livro As origens da virtude: um estudo biológico da solidariedade, do zoólogo liberal Matt Ridley (ver mais sobre isso nas NOTAS), o capítulo nono demonstra por que as sociedades cooperativas, com membros vivendo em auxílio mútuo, oferecem também o preço do preconceito grupal que está na origem de tantas guerras. O autor mostra como a cooperação tribalista favorece o grupo – grupos que cooperam florescem, grupos egoístas decaem –, como inimigos externos contribuem para a coesão do grupo – e um inimigo comum pode fazer facções dentro do grupo se unirem para o combate –, como a tendência a “ser ovelha” faz com que mudemos de opinião e gosto para acompanhar a maioria conforme a informação em cascata do momento e como “[…] quanto mais cooperativas são as sociedades, mais violentas são as guerras entre elas”. E também como a cultura diferencia as disputas humanas em relação às disputas dos outros animais: 

“O que faz os seres humanos serem diferentes é a cultura. Devido à prática humana de transmitir tradições, costumes, conhecimentos e crenças por informação direta, de pessoa para pessoa, há um tipo de evolução inteiramente novo acontecendo entre os seres humanos – uma competição não entre indivíduos ou grupos geneticamente diferentes, mas entre indivíduos ou grupos culturalmente diferentes.” 

A competição cultural, todavia, foge da nossa valoração moral. Não pense que “a melhor cultura vencerá”, pense que vencerá a cultura que conseguir um domínio maior sobre as pessoas utilizando táticas diversas. Mais Ridley: 

“No que diz respeito à religião, propriamente, o universalismo da moderna mensagem cristã tende a obscurecer um fato óbvio sobre o ensino religioso – que ele quase sempre enfatiza a diferença entre os do grupo e os que não são do grupo: nós contra eles; israelitas e filisteus; judeus e gentios; redimidos e condenados; crentes e pagãos; arianos e atanasianos; católicos e ortodoxos; protestantes e católicos; hindus e muçulmanos; sunitas e xiitas. A religião ensina a seus adeptos que eles são a raça eleita e que seus rivais são idiotas consumados, quando não subumanos. Nada há de especialmente surpreendente nisso, dada a origem da maioria das religiões, cultos sitiados em sociedades tribais violentas e divididas.” 

Os evangélicos neopentecostais não estão conseguindo, no Brasil, fazer sua cultura se firmar e prejudicar a população inteira porque além de crescerem numericamente estão alcançando cargos políticos de relevância? Se sua cultura continuar crescendo e vencendo, em poucas décadas será correto, do ponto de vista legal, ensinar criacionismo nas escolas, o aborto não será permitido nem em casos de estupro e a defesa pública do ateísmo será criminalizada. Não parece fácil impedi-los nesse anseio de domínio, ainda mais num país de baixa instrução como o Brasil. Mas se temos como frear o domínio de outras culturas retrógradas, que às vezes vêm, sim, junto com um povo quase inteiro – sempre há os rebeldes, e dependendo do país os rebeldes são presos e executados –, devemos fazer isso. Não num estilo 0,8 ou 800 de venham-muitos-ou-não-venha-ninguém. Não fechando as portas para quaisquer imigrantes. Mas tendo em mente que as fronteiras existem por um motivo justificável e que elas nos protegem também da detonação da nossa própria cultura. O multiculturalismo é bonito nos livros românticos e nas histórias infantis que contamos para nossas crianças. Na prática, há milhares de meandros. O multiculturalista que recebe um estrangeiro em sua casa precisa saber qual é a visão de mundo desse estrangeiro, que leis ele considera que devam ser aplicadas a todos e se ele é, afinal de contas, também um multiculturalista. 

Mundo sem fronteiras é utopia. Lamento a primariedade de quem defende isso. E lamento que influenciadores como Alexandre Versignassi propaguem esse tipo de maluca ideia “provando que há ganhos econômicos” e esquecendo o resto. O resto, nesse caso, não é mero detalhe. 

*** 

Apesar de o pós-modernismo estar costumeiramente vinculado a parte da esquerda, ele não é um distúrbio só seu. Com o avanço do obscurantismo político numa época em que a internet permitiu que também os imbecis conseguissem se encontrar e organizar enquanto grupo defensor de uma causa comum – não é um alento quando você defende uma imbecilidade e sabe que não está sozinho? –, avançaram também as “novas narrativas” da parte xucra da direita, que passou a achar que as análises de especialistas sobre determinados assuntos nada mais são do que apenas mais uma visão de mundo, válidas na concorrência como tantas outras visões formuladas em fóruns virtuais. É assim que Olavo de Carvalho e seus asseclas se sentem confortáveis para expôr “suas verdades” num ambiente que supõem relativo: “o Doutor Thompson, que se dedica ao tema há trinta anos, tem a opinião X, mas neste mês também me dediquei a estudar o assunto, surjo com a opinião Y e acho que ela tem que concorrer junto à dele – afinal, o Doutor Thompson não é o detentor da verdade das galáxias”. É degradante que tenhamos chegado a um ponto em que não só a opinião infundada de um Zé Ninguém com internet e câmera de vídeo em casa tenha adquirido pertinência na linha “ele tem uma opinião que vai contra a comunidade científica, não seria justo a gente ouvir?”, mas em que ocorre algo equivalente a isto: especialistas assessorando a montagem de naves espaciais recebem um bilhete, são obrigados a descer as escadinhas do foguete, trocar de roupa, viajar até um canal de televisão e participar de um debate de dois lados para declarar: “não, a Terra não é plana”. 









Passou a ser sinal de justiça e humildade interromper uma explanação sobre as estrelas, passar o microfone para o louco de palestra no fundo da sala, ouvir seu discurso confuso e dizer “é uma opinião a se considerar” para não parecer arrogante. Você já deve ter participado de reuniões de trabalho alopradamente “democráticas” em que alguém dá uma opinião disparatada e as outras pessoas dizem “é, é algo a se pensar, podemos ver” em vez de dizer “se é para abrir a boca para isso, nem precisa participar”. Agora estamos nesse nível em “debates” sobre vacinas, o formato da Terra, remédios, combate ao coronavírus, “a obesidade predispõe fortemente a doenças ou é só mais um estilo estético?”, evolução das espécies, arte. O negacionismo sempre existiu na história humana, bem como as fake news e os charlatões. Mas hoje ele está mais metodizado e tem facilidade para chegar a todos como modo de viver. Globalizou-se e conseguiu estruturar seus adeptos, que de uma cadeira de gamer daqui conseguem encontrar alguém do outro lado do mundo que também conspira contra os consensos científicos e a suposta soberba de todos os especialistas. Se entre os estudados, no entanto, houver um ou dois a negar o consenso e a defender o que os negacionistas apriorísticos pregavam, aí há um orgulho em apontar “olha lá, um cientista ousou desafiar a comunidade e está chegando a conclusões diferentes; e seus estudos só não são avaliados por pares porque, vocês sabem, os pares estão todos enviesados numa conspiração mundial para nos enganar”. 


Parece tudo muito insano. A tendência ao criticar a nudez de todos esses reis é receber zombaria, gritos histéricos e vaias de quem alega ver longos mantos cheios de detalhes cobrindo os corpanzis das majestades autoproclamadas. Nesse caso, o descontentamento deles não é algo a se temer. Fico com as respostas do grande cientista Rick Sanchez: “your boos mean nothing, I've seen what makes you cheer” e “every breath I take without your permission raises my self esteem”. Que dariam, aliás, ótimas estampas para futuras camisetas. 

***

NOTAS (tão extensas que são quase uma nova postagem)

1. House music é um dos meus gêneros musicais preferidos. E simplesmente adoro ver esses vídeos de gente dançando em festas eletrônicas dos anos 90. Apesar do nome, Nørus é um DJ brasileiro. O vídeo em sua viajante “Make a move”, que embalou parte desta postagem, é de uma maratona de dança que aconteceu em 1995 na Lituânia. Apesar de no vídeo original todo mundo estar dançando ao som de eurodance, a montagem com “Make a move” ficou fidedigna na sincronia de música e danças. Os comentários que estão no topo da lista são muito engraçados: “Look at all these people walking around like Pluto is a planet”, “Nothing better than a rave where everyone is invited. Even grandma and little cousin Bobby” e outros. Outra música eletrônica ótima que foi colocada em cima de um vídeo de festa – desta vez, uma festa na Inglaterra em 1992 – é a “1992”, do DJ americano No_4mat

2. Quem diz que hoje em dia não se faz mais boa música está seriamente desinformado. É claro que se você olhar para o TOP 100 do Spotify as músicas são abomináveis. Mas há um universo de artistas e bandas fazendo música em 2020, e de inúmeros gêneros, que estão fora do mapa mainstream, mas dentro do acesso de qualquer um. House music, por exemplo, fez sucesso nos anos 90. Muita gente que aproveitou a onda daquela época acha que hoje o gênero está morto, o que é um equívoco: além de termos subgêneros modernizados dentro da House music, há quem continue fazendo House music tal como tocava nas danceterias nos anos 90. Alguns gêneros musicais estão semimortos, exigindo nostalgia para sua apreciação – não tenho sabido de artistas que estejam produzindo eurodance, por exemplo, nesta década –, mas acredite: a maioria dos gêneros que já viveram auge mainstream no passado continua existindo graças ao trabalho de bandas e artistas menores. Pensar que o The Cure é um sobrevivente pós-punk é meio deprimente porque mostra que seus fãs, em época de internet, precisam de rádio, TV e bafafá para considerar que um gênero exista. Tanta música excelente sendo feita no mundo e só os mesmos artistas e as mesmas bandas estão ganhando muito dinheiro. 

3. “Instalação artística”. Ouve-se isso e a alergia começa a atacar. 

4. Sokal e Bricmont estavam numa batalha contra o esquerdismo? Não: 

“[…] nosso livro não é contrário ao radicalismo político, é contra a confusão intelectual. Nosso objetivo não é criticar a esquerda, mas ajudá-la a defender-se de um segmento seu que está na moda. Michael Albert, escrevendo no Z Magazine, resume bem a questão: 'Não há nada verdadeiro, sábio, humano ou estratégico em confundir hostilidade à injustiça e à opressão, que é bandeira da esquerda, com hostilidade à ciência e à racionalidade, o que é uma tolice'.” 

5. Bruna Frascolla viveu 2019 a defender que “Bolsonaro não deve ser julgado pelo que diz, mas pelo que faz” e gritando “RIP Jornalismo!” quando a imprensa fazia manchetes das ideias da aberração apocalíptica que não tem capacidade nem de atuar como síndico de prédio pequeno. Não só votou no trevoso como tentou intelectualizá-lo dentro de sua lógica espeloteada com ar montanhesco. Encostou-se em analistas políticos mornos como Fernando Schüler, que no afã de se mostrar como imparcial e ponderado fica narrando em tom monocórdico as atuações de pombos enxadristas da política – como Bolsonaro – e na saída de Mandetta fez uma leitura de cama-de-hospital-à-espera-da-morte como esta para a Band. Uma filósofa, doutora em Filosofia – área que navega em oceanos de ideias e muitas vezes não chega a lugar nenhum –, reclamando que as pessoas se preocupam à toa com as ideias de Bolsonaro, como se as ideias não tivessem poder de criar e espalhar o terror. Quando “vertentes” que a incomodam dão “ideias” em público, ela se empertiga, entretanto. E não pensa muito antes de externar certas ideias suas. Quando membros de uma ONG ambientalista foram presos preventivamente no Pará acusados de tacar fogo na mata para fazer valer sua função de protetores, Bruna rapidamente foi tagarelar que aquilo era mais do que esperado, porque havia muito sentido em ambientalistas forçarem a demanda por seus serviços. Os ambientalistas foram soltos, alegaram inocência, ninguém conseguiu provar nada até hoje contra eles. Bruna não se desculpou por ter falado pelos cotovelos no calor do momento de uma situação que começava a ser investigada. Continuou opinando abobrinhas sobre outros assuntos variados e quando errou nas análises não deu o braço a torcer. Assumir erros não é característica sua. Se alguém lhe aponta as falhas, ela sempre arranja uma justificativa, como quando alguém apontou que estava equivocada ao dizer que Bolsonaro tinha criado cinco universidades federais. A Filosofia está mal. Só nesta postagem citei três filósofos – Djamila, Olavo e Bruna – que são um espanto. Faltou Márcia Tiburi para fazer um roteiro de Sessão da Tarde em que quatro amigos se metem em altas confusões. Bruna merece esta nota, mas não só. Merece também aparecer na categoria parasitária de bolsonarista, vestimenta que defendeu e até hoje contemporiza com seu mantra vaidoso “a outra opção era pior”. E já que se considera patrona de Gilberto Freyre, merece também uma recomendação de leitura: Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos, de Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. 

6. Na primeira vez em que eu e meu namorado fomos à França, fomos recebidos, no aeroporto, por jovens que atuavam no auxílio a turistas. Não falavam inglês. Não sabiam responder as horas em inglês porque não entendiam o significado da pergunta “what time is it?”. Eram simpáticos e eu simpatizei com eles um pouco mais porque, naquele tempo, antes de tomar uns bons drinks meu inglês falado era uma droga. Nós já sabíamos do estereótipo do “franceses não gostam do inglês”, mas chegar ao aeroporto e ter como primeiro contato jovens contratados para auxiliar turistas e que não falavam inglês nem nível A1 fez com que pensássemos que o negócio era muito pior do que o imaginado: “devem odiar, mesmo, porque até colocam para ajudar turistas funcionários que não sabem nem dizer as horas”. Ficamos preocupados; não falamos francês além do estágio “curiosidades”. Depois, na cidade, percebemos que a situação não era grave: muita gente jovem falava inglês básico, e apenas considerava polido começar a conversa com um cumprimento em francês. Você pode tentar conversar em inglês, desde que antes diga “bonjour” e pergunte “do you speak english?”. Se já chegar falando em inglês, é grande a chance de uma cara emburrada da outra parte. 

7. O Sul do Brasil tem inúmeros sotaques. Mas existe uma linha comum na maioria deles que faz com que sejamos reconhecidos como “do Sul” no restante do país, não importa se nascemos em SC, PR ou RS. O mesmo acontece com nordestinos. Podemos não saber de onde são exatamente, mas percebemos que são do Nordeste. Ou do Nortão de Minas Gerais. 

8. Trabalho desde os 17 anos e nunca entendi esses esparsos “encontros com o pessoal do trabalho” em que todo mundo é convidado a sair junto e beber, como se fosse possível que todos se dessem bem com todos e como se fosse possível que uma festa do trabalho não fosse apenas uma extensão do trabalho. Uma coisa é você sair com colegas que estão no mesmo nível hierárquico que o seu, que já estão “testados” para não te prejudicar e que de fato partilham gostos comuns com você a ponto de conseguirem manter conversas profundas. Outra coisa é ir a um bar com chefias ou com puxa-sacos de chefes. Não se engane, você não poderá “ser você mesmo”. Seu chefe ficará observando quanto você bebe, o puxa-saco está te estudando para te queimar. Qual é a graça num encontro desses que apenas parece uma daquelas tardes tensas na casa da sua bisavó comunista que tem saudade do Stálin e foi responsável por dedurar artistas para o regime? Situação em que declarar “acho que vou tomar mais uma” gera olhares que equivalem ao beliscão da sua mãe quando você disse “bisa, dessa vez poderia me dar um pedaço de torta maior?”. 

9. Gosto muito de tomar café descafeinado. Mas se meu namorado chegar em casa e disser “rápido, a TV local está vindo aqui fazer uma reportagem sobre o aproveitamento do espaço em apartamentos pequenos” não vou dizer “peraí, vou trocar de roupa e passar um café” para fazer questão de aparecer na filmagem tomando café. Judeus usam quipá, mulheres muçulmanas usam véu, mulheres crentes usam saias jeans e cabelo longo com ponta dupla – e gaúchos usam chimarrão para estabelecer sua origem em público. Na maioria das vezes em que um gaúcho é entrevistado em sua casa ou em seu local de trabalho, ele sente uma grande necessidade de marcar posição com a cuia e a térmica:

– O repórter está vindo agora para conversar sobre o acidente de moto que aconteceu aqui na rua. 
– Diga para ele esperar que vou fazer um baita de um chimarrão. 

*

– Delegado, vão entrevistar o senhor na sua sala por causa daquele bandido. 
Bah, arrume a minha mesa e coloque a térmica e a cuia lá. 

Parece que não gosto de gaúchos? Mas o que é isso... Até tenho amigos que são, etc. 

10. Se eu disser que o Rio Grande do Sul exporta só chatos e arrogantes não serei justa. A quantidade de grandes escritores e jornalistas nascidos no Rio Grande é imensa. Consigo puxar de cabeça, fácil, mais de uma dezena que são modelos profissionais e se espalharam pelo Brasil a fazer fama por sua qualidade. E Santa Catarina? É lamentável, mas não consigo pensar em ninguém além de Cruz e Sousa. Parei aqui por dois minutos e nenhum outro grande escritor ou grande jornalista catarinense com relevância nacional me veio à mente. Não é à toa que o restante do país acha que Santa Catarina é só um estado muito distante. 

11. Acho que foi em O macaco de nu, de Desmond Morris, que li sobre o gosto dos homens pelo cabelo comprido das mulheres, porque esse seria um indicativo de saúde. Como mulheres também estão atentas ao físico de seus potenciais parceiros – apesar de o trunfo deles estar nos bens e no status –, faria sentido que os homens também tivessem cabelos compridos para auxiliar na boa avaliação de sua saúde? Talvez. Se isso, o homem de cabelo curto seria algo cultural? 

12. Pode não ser uma realidade agradável, mas costuma acontecer. Homens feios com dinheiro e poder conseguem como parceiras mulheres bonitas. Mulheres feias com dinheiro e poder não têm tanta facilidade nisso, e, quando poderiam ter, muitas vezes rejeitam o jovem que se engraça com elas. O homem feio com dinheiro e poder pensa “isso, gatinha, vem aproveitar meu dinheiro e meu poder”. A mulher feia milionária pensa “esse malandro está achando que vai se aproveitar do meu dinheiro e poder?”. Só com essa imagem já podemos fazer um grupo de estudos de longo trajeto sobre os papéis de homens e mulheres no mercado das trocas entre poder e beleza. 

13. Está na Netflix um documentário curto e chocante sobre a força do grupo sobre os indivíduos. Chama-se One of us (2017) e conta a história de três ex-judeus hassídicos em Nova York. Nova York tem uma grande comunidade de judeus hassídicos, ortodoxos, que é extremamente coesa. Mas aqueles que decidem abandonar a comunidade passam por péssimas situações. A quem pensa rapidamente “puxa, então que bom que abandonaram a comunidade opressora!”, não se engane: uma vez que você foi criado num grupo unido cheio de regras, abandoná-lo após tantos anos de costume pode ser uma experiência frustrante. O indivíduo passa a ver que não quer mais estar naquele grupo, mas também tem dificuldade de encontrar felicidade fora dele. Há quem precise de uma forte sensação de pertencimento tribal para se sentir bem consigo mesmo, para sentir que tem importância dentro de um coletivo e que o coletivo o acalenta. É nessa carência que atuam as religiões, os agrupamentos políticos e até a cooptação para o crime. 

14. Li As origens da virtude: um estudo biológico da solidariedade, de Matt Ridley, em fevereiro de 2016 – às vezes eu marcava nos livros quando os lia, hoje marco em um caderno –, e li esperando um livro de biologia. É um livro de biologia, mas não só: com andanças pela biologia, Ridley vai guiando o leitor para sua visão liberal de mundo. O capítulo 13 se chama “Confiança: no qual o autor, súbita e temerariamente, tira conclusões políticas”, e nele é feito um fechamento político embasado em tudo que foi abordado nos capítulos anteriores: a ilusão de que a natureza é boa, as vantagens evolutivas da solidariedade, o papel dos grupos na vida dos indivíduos, a lenda do bom selvagem. Ele encerra o livro dizendo, no penúltimo parágrafo: 

“Se queremos recuperar a harmonia e a virtude sociais, se vamos restituir à sociedade as virtudes que a fizeram funcionar, é fundamental reduzirmos o poder e o alcance do Estado. Isso não significa uma guerra violenta de todos contra todos. Significa devolver: devolver o poder sobre a vida do povo às paróquias, às redes de computadores, aos clubes, aos times, aos grupos de autoajuda, às pequenas empresas – tudo que é pequeno e local. Significa um grande desmonte da burocracia do serviço público. Que os governos nacionais e internacionais se limitem às suas funções mínimas, de defesa nacional e redistribuição da riqueza (diretamente, sem a intervenção de uma burocracia voraz). Que a visão de Kropotkin sobre um mundo de indivíduos livres ganhe novo ímpeto. Que todos se levantem e caiam por conta de sua própria reputação. Não sou ingênuo a ponto de achar que isso acontecerá da noite para o dia ou que nenhuma forma de governo é necessária. Mas questiono a necessidade de um governo que dê ordens sobre os mínimos detalhes da nossa vida e se agarre como uma pulga gigante nas costas do país.” 

Isso é quase Milton Friedman em seu Livre para escolher: um depoimento pessoal

As origens da virtude é bem ponderado e pode ser lido por qualquer um, mesmo que antipático às ideias liberais. É um bom livro, mas é sempre importante saber a partir de que ângulo um autor escreve. Ridley, vejam, é o que chamam de controverso. É cético sobre pontos concernentes às mudanças climáticas. Seus críticos indicam que parte disso se deve à sua conexão com a indústria do carvão, com a qual ele tem negócios. Também foi favorável ao Brexit. E é membro do Partido Conservador do Reino Unido. É preciso saber tudo isso antes de ler os livros dele? Eu acho bom – sempre acho bom saber exatamente de que ângulo uma pessoa está olhando as coisas para melhor avaliar o que ela está tentando me empurrar. Se você lê um livro de biologia que vai tentar te encaminhar para conclusões liberais sobre a sociedade, é importante saber que o autor tem os pés algo cimentados no campo liberal. Isso não deve predispor a muito – devemos nos prender aos argumentos apresentados –, mas é interessante ter uma base de conhecimento antes de chegar àquele ponto de “mas, espera aí, esse autor está parecendo tão liberal...”. Sem dúvida há coisas aproveitáveis na doutrina liberal. Como solução plena para o mundo, é quase tão utópica quanto o socialismo. 

15. Vanessa Barbara escreveu o divertido O louco de palestra e outras crônicas urbanas. Coloquei ali em cima e recoloco aqui o hiperlink para a crônica O louco de palestra na Piauí e recomendo a leitura. Vanessa Barbara é uma escritora criativa e sensível. Escreve textos ternos, como o Caminhando com Batatinha, em que narra seus passeios pelo bairro com sua filhinha, e O verão do Chibo, a quatro mãos com Emilio Fraia, sobre o amadurecimento de uma criança. Infelizmente é uma autora que não tem no Brasil o valor que merece. É subestimada. E também infelizmente parece ter associado sua subestimação ao machismo, tanto é que radicalizou seu discurso feminista e entrou na onda de apoiar ativistas febris de ódio a discursar como se estivéssemos no século XV sobre os direitos das mulheres no Ocidente. Lamento isso. Ao ler recentemente o Caminhando com Batatinha, fiquei feliz de ver que não se tornou um limão humano, como são tantas de suas colegas feministas da quarta onda. 

16. A Netflix não tinha sucesso em dar continuidade a programas que eram bons em outros canais. Quando produzida pelo canal britânico Channel 4, a série de ficção científica Black Mirror era formidável e assustadora. O futuro excessivamente tecnológico mostrado por ela era um retrato agoniante porque possível e próximo. Quando a Netflix pegou o bonde parado e decidiu recolocá-lo em movimento foi uma lástima: fotografia, argumento, efeitos, tudo ficou péssimo em sua produção da série. O mesmo aconteceu com a série cômica Arrested Development. Ela foi ao ar na FOX de 2003 a 2006. Em 2013 a Netflix comprou os direitos da série e trouxe-a de volta. Por que, meu deus, por quê? O resultado foi tenebroso. Uma série que me fazia rir muito me causou imenso desgosto já no primeiro episódio da Netflix: filmagem estranha, personagens inseguros, diálogos sem graça, tramas idiotas. Mas há uma exceção nessa constância de erros: o genial Rick and Morty, desenho sobre um velho cientista ranzinza e seu neto vivendo aventuras na Terra e no espaço. Quando eu soube que a Netflix daria continuidade ao desenho, já comecei a me preparar para o pior e para um panelaço de protesto. Felizmente eu estava errada. A última temporada é tão boa quanto as outras. É um dos melhores desenhos disponíveis hoje na TV. 

17. Os diabos bárbaros e a quarentena dos entediados: 






18. Em abril eu tinha uma viagem pronta de 17 dias para a Inglaterra, a Alemanha e a Itália. O novo coronavírus acabou com ela. Fico ansiosa quando vejo pessoas da minha idade e sem comorbidades morrendo. Nunca passei tanto tempo sem visitar a minha mãe. Tenho pessoas próximas e queridas que trabalham na área da saúde. 

Eduardo Bolsonaro é irresponsável gerando rusgas diplomáticas ao criticar a China. É um anão político e atua num país que tem grande dependência econômica chinesa. Mas não entendo por que a imprensa mundial não está fazendo esse papel de cobrança e por que líderes de potências não ameaçam sanções se a China não melhorar pra valer. Quantos vírus que surgiram lá já não criaram pânico no mundo? Como é que alguns mercados chineses de animais funcionam sem regulação de higiene? Só não entrarei agora no desmérito da China de ser um dos piores países do mundo no tratamento com animais porque isso pede um longo texto. O que essas cobranças todas soam nos ouvidos pós-modernos? Xenofobia. Vão plantar batatas.