quinta-feira, 11 de abril de 2019

A morte da PTS



The Economist previu 2019 como o ano do veganismo, e de fato: nunca foi tão fácil ser vegano, apesar de a revolução ainda ter como metade do fundamento um mercado natureba de comidas difíceis de engolir. Já experimentei opções que pareciam alpiste, farelo para galinhas, gororobas para sedentários deprimidos sem asseio e sem critério, lanches que foram recusados até por cães. Fui para casa e fiquei com os tradicionais pratos que nunca pediram um pedaço de bicho para serem bons, mas continuei arriscando colocar meu nariz para fora da janela tentando sentir se empreendedores verdes conseguiriam dar algumas dentro. Às vezes deram. 

Há não tantos anos assim, um vegano poderia se considerar sortudo quando planejasse visitar um amigo que já fosse declarando “vou fazer algo para você, não se preocupe”. Ao chegar à festa, o prato era PTS (proteína texturizada de soja, que é a soja numa de suas piores formas nutritivas e de sabor) com alguma outra coisa, como o enjoativo creme de soja da Batavo ou macarrão para simular uma macarronada à bolonhesa, que não existe em Bologna nem na forma como a conhecemos. Era na mesma época na qual se você entrasse num grupo e declarasse que era vegano (causa), em cinco segundos alguém já estaria falando sobre “carne de soja” (consequência). Hoje não há só boas coxinhas de jaca (nem sempre, è vero, mas muitas vezes) e sobremesas respeitáveis, mas assistimos a uma ascensão da tal comida de laboratório que já está mudando o cenário alimentar nos países onde é comercializada. A americana Beyond Meat fez hambúrgueres e salsichas (tipo a wurst alemã) muito realistas a partir de componentes tirados de plantas e grãos. A também americana Just, Inc. pretende vender carne de laboratório – sem ser um patchwork de plantas, mas alimentando células animais in vitro para desenvolver carne “de verdade” sem precisar matar ninguém – até o final de 2019. A Unilever tem comprado uma porção de marcas veganas e semiveganas, e também feito versões veganas de alguns produtos tradicionais de seu império, como a já comercializada Hellmann's vegana. Em poucas semanas São Paulo deve receber em alguns restaurantes seu primeiro hambúrguer feito em laboratório ao estilo Beyond Meat sob a marca Behind The Foods, de um publicitário que se tornou vegano em 2016, conheceu as carnes falsas quase verdadeiras nos EUA e resolveu investir numa tendência mundial para a qual existe grande demanda no Brasil. Se o interesse cresce por preocupações éticas, por causa de reportagens no Fantástico ou porque Anitta e Xuxa se tornaram veganas, o mercado capta o anseio e lança opções. Fico pensando o que Ian MacKaye, que se tornou vegano antes de todos nós quando não existiam muitas alternativas fora do hortifrúti e da cozinha caseira, acha desse vento favorável. Eu considero um salto que está prestes a separar os trogloditas completos dos meramente acomodados. 

Vamos vendo. 

Aos que tentam salvar a própria ignorância com fajutices argumentativas e já iam erguendo o dedo para decretar que “carne de laboratório não é natural”, vale lembrar que nem o hippie mais sessentista consegue levar uma vida natural, que os remédios alopáticos que vocês tomam para qualquer dor nas costas não são naturais, que tratamentos para que crianças com deficiência se desenvolvam melhor não são naturais (na natureza, os animais abandonam ou matam as crias deficientes porque elas são consideradas um fracasso biológico), que inseminação artificial, ora, não é natural, que enxugar louça não é natural. Se estamos vivendo com milhares de coisas não naturais no cotidiano, não há motivo para não inserir mais uma aí, cuja nobre adoção gera menos sofrimento para seres sencientes que merecem ter seus interesses levados em consideração por quem resolveu participar de certa ideia de civilização. 

*** 

NOTAS 

1. Se fazem macarrão à bolonhesa de uma forma diferente da que se faz em Bologna, certo, é uma curiosidade, mas a única gravidade aqui é o animal ralado. Há quem viaje e volte viciado nesse tipo de correção “não-é-tal-como-conhecemos-o-costume-de-lá”. Não me convidem para essas conversas enfadonhas. Na dúvida, não me convidem para conversas. Nunca me arrependi de não ter embarcado num papo furado. 

2. Escrevi “lanches”, mas não gosto dessa palavra. 

3. Esses tempos estive no Chile aberto a importações e já estavam vendendo Beyond Meat e Beyond Sausage lá. Trouxe uma bolsa térmica cheia deles para cá. 

4. Não fiquei sem escrever por falta de assunto ou de textos em andamento, mas porque gerir uma casa “informacional” é um trabalho enorme. Meu namorado e eu organizamos livros, músicas, artigos interessantes de revistas (as revistas só vão para o lixo após escaneados os artigos selecionados), filmes, discos. Isso toma tempo. Optamos por comer em casa na maioria das vezes e cuidarmos, nós mesmos, dos afazeres domésticos. Voltei a fazer faculdade pelo correio. Estudo dez minutos de italiano por dia (em vinte anos estabelecerei diálogo com os nativos, não tenho pressa). Ou seja, basta fazer a matemática para entender por que nem sempre consigo manter uma regularidade nesse quarto bizarro que é o meu blog. Mas até a Páscoa postarei parte do Tratado de parasitologia humana, ou Compilado de parasitologia humana. Fui escrevendo um tanto num mês, escrevendo outro tanto no outro, quando vi já tinha vinte páginas (ainda crescendo), então terei que dividir o texto em três ou quatro partes. Mais uma postagem categorizando as misérias humanas? Sem dúvida. Não sejam dramáticos sobre a “negatividade” ou o “não vê o lado bom das pessoas” (é preciso fazer estudos e cálculos para achar o ângulo de onde se vê esse lado). Se o chapéu não servir, apenas se entretenham, já que fizeram questão de vir me ver. Un bacio per voi

5. Gata preta, gato branco (Crna macka, beli macor, 1998), filme do Emir Kusturica, está no meu top 20 (apesar do mau tratamento que muitos animais recebem no longa). A música que encabeça essa postagem está na trilha. O Die Antwoord fez uma boa versão dela, mas não chega aos joelhos da original, que é alucinada, old school e noturna. 

6. Eu ia reclamar do governo um pouquinho, mas sei que começo pensando “só uma linha” e termino num discurso virulento em que chamo, salivando, de “burros” todos os que votaram no Bolsonaro, contemporizaram Bolsonaro ou defenderam uma bundona isenção. Perco o respeito, desço dos meus chinelos e tenho que me segurar para não sair de casa às duas da manhã à procura de um bolsonarista para bater (“para deixar de ser burro!”). Viro hooligan

7. Recomendações do instante. Livro: Noites lebloninas, do João Ubaldo Ribeiro, que me conquistou e amoleceu. TV: a série documental Hip hop evolution (2016-), da Netflix, para quem gosta de no mínimo algum braço do hip hop ou aprecia história de gêneros musicais. 

8. Costumo falar sobre “livros para ler em uma sentada”, mas em casa quase só leio livros deitada. O livro do João Ubaldo citado na nota anterior é para ler em uma deitada.