segunda-feira, 31 de julho de 2017

O rol das fórmulas problemáticas e outras abobrinhas


Não convivo em sociedade tanto quanto vocês, mas o pouco de convivência que experimento serve para colocar minhas antenas de fora e captar tudo o que passa com as pessoas, essas figuras interessantíssimas e gravemente defeituosas. Se nem sempre posso fruir a vida em sociedade – porque há um limite para a dissimulação defensiva –, posso ao menos aprender alguma coisa com ela, usá-la para elaborar meus textos mentais (o blog dentro da minha cabeça tem dezenas de vezes mais conteúdo que este, que frequentemente abandono às moscas) e, quando possível, tomá-la como base para criar personagens. Um dos aprendizados que tomei ao realizar tantas observações foi o de entender que todos, mesmo os mais improváveis, têm fórmulas para gerir a vida. E essas fórmulas podem ser boas, mas geralmente são equivocadas e nocivas. Quem pode ser refém delas? Qualquer um que conviva com um “formulador” contumaz. 

Sempre tive receio dos formuladores quando eles tinham algum poder sobre mim: um chefe, um professor, um atendente para serviços que necessito com urgência, um médico. O formulador, quando está muito certo da teoria fajuta que ele acredita ser aplicável de maneira radical, pode destruir minha vida ou, como dizem os coitadistas cheios de não-me-toques, “minha saúde mental”. Experimente “ter o signo errado” quando seu contratador for um aficionado por astrologia que pensa que, de acordo com a data em que nasceu, você só pode ser um problema. Experimente não gostar de crianças ou de cachorros quando tiver uma chefe – e eu ouvi isso de uma superiora – que diz a sério que “nunca é possível confiar em alguém que não goste de crianças ou cachorros”. Francisco Daudt da Veiga, psicanalista que aceitou fazer participações crônicas no modorrento programa da Fátima Bernardes, foi convidado a se retirar após o ápice de suas opiniões polêmicas: disse que não gostava de cachorros. Isso foi demais para os telespectadores, que pediram a cabeça de Daudt porque ele correspondia à fórmula do “somente uma pessoa horrível pode não gostar de cachorros”. Fórmulas como essas podem ser bem danosas, principalmente nas mãos de quem tem autoridade sobre os outros, mas o saco é muito mais fundo. Por isso apresento-lhes O rol das fórmulas problemáticas e outras abobrinhas. Os nomes próprios são somente para exemplificar, portanto são fictícios. 

“Não tenho nada contra a Wanda, ela nunca fez nada de mal para mim.” [Sobre Wanda, que todos sabem ser uma pessoa sem caráter.]

Que planeta ególatra é esse que habitamos onde uma pessoa só pode receber uma avaliação negativa minha se tiver feito algo de forma específica contra mim? Existem alguns modos de eleger alguém como ruim: a) nunca vi fazendo mal a ninguém, mas tem uma personalidade horrenda, b) fez mal considerável ou reiterado a mim, sem motivo razoável, ou c) fez mal considerável ou reiterado a alguém, pelo motivo errado e/ou sem ser uma reação a um mal feito anteriormente. Isso tudo me parece muito justo. Há, no entanto, uma parcela de indivíduos considerados íntegros, pacíficos, de boa índole, incapazes de falar mal dos outros, que se saem com essa quando se fala sobre um notório ímpio: “não tenho nada contra ele, pois nunca me fez nada”. Muito bem, vamos ao drama: Hitler nunca me fez nada. Devo deixar de ter algo contra ele por isso? E Jesus: acham ajuizado que alguém devesse ter tomado as rédeas desse homem que resolveu se opor a tanta gente que não tinha feito nada contra ele? “Jesus, por que o senhor está destruindo o comércio do povo que se instalou no templo? O que ele lhe fez de mal?” No pior dos casos, Victor Hugo entra em cena com seu “quem poupa o lobo sacrifica as ovelhas”. Ao não agirmos contra uma pessoa ruim somente porque “ela não nos fez mal particularmente”, podemos colocar em risco pessoas boas que são atingidas por ela. 

“Rogéria é uma boa pessoa, pois nunca fala mal de ninguém.”

Nem sempre “quem não fala mal de ninguém” o faz porque é budista em grau máximo; ou seja, não falar mal de ninguém pode não ser boa coisa. Há pessoas que não falam mal de outras porque têm medo de ser confrontadas – assim como há quem não furte somente porque tem medo de ser pego, e não porque aderiu ao princípio de “não tomar o que não é seu” –, porque querem ser gostadas por todos ou porque, simplesmente, são bundonas. O bundão vê alguém ameaçando um pequeno funcionário dentro de uma empresa e não denuncia “porque não quer se envolver”. O bundão vê um colega de trabalho na escola desrespeitando uma criança e fecha os olhos “porque não quer se meter em problemas”. Um mundo cheio desses bundões que não falam mal de ninguém que mereça é um mundo repleto de injustiça. Não é uma virtude você saber que uma pessoa bate o ponto e vai para casa no horário de trabalho e guardar isso consigo. Não é uma virtude você ver que um amigo está enganando outro suposto amigo apenas por interesse (dinheiro, poder, status) e deixar que o enganado pereça sem saber quem causou sua tragédia. Calar sobre uma informação que se tem pode ser um erro grave em vez de uma qualidade. 

“Cláudio era uma pessoa muito bondosa, amiga, genuína.” [Sobre Cláudio, que acabou de morrer.] 

No excelente livro Fim, da Fernanda Torres, um personagem perde o pai. Esse pai era um canalha e foi um péssimo pai. O personagem hesita um pouco, mas prossegue: convida todo mundo para participar do sepultamento do canalha que foi seu pai. Sem floreios, sem mentiras. Quando Ayrton Senna morreu, Nelson Piquet não foi ao seu enterro, para o espanto de muita gente. Espantoso seria, na verdade, se tivesse ido ao enterro de uma pessoa que detestava em vida, e se começasse a fazer um panegírico. Nós, como foi bem dito pelo Contardo Calligaris em entrevista no Roda Viva, temos essa mania estranha de elogiar os mortos, mesmo que não mereçam. (Nós não, porque eu não faço isso.) Tem meu respeito quem sabe avaliar um morto como a pessoa que foi, e não como a pessoa que fica bem que tivesse sido. Vi poucas pessoas morrerem. Todas permanecem na minha avaliação iguaizinhas ao que eram em vida. 

“Paulo dirigia embriagado na rodovia e desmaiou ao volante. Seu carro foi parar na outra pista e todos os caminhões que vinham conseguiram desviar. Não era a vez de Paulo. Se não morreu, é porque não era para ter sido.”

Esse tipo de sentença já mexe comigo porque subentende a presença de Deus, e é um Deus com um modo de operar estranho. A maioria das pessoas que acredita em Deus parece achar que o Criador é trouxa ou astigmático: Ele protegerá quem colocou o adesivo “fé” no próprio carro, Ele dará o céu a quem crê Nele mesmo que essa pessoa não faça o bem, Ele permitirá o paraíso a quem acumula posses mesmo tendo deixado claro que “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino dos céus”, Ele só observa atos e não pensamentos, etc. Mas deixemos Deus um pouco para lá, nas nuvens que se confundem com sua barba. A questão é: se temos hora para morrer, por que seguir normas de segurança? Se eu já tenho um momento “que é para ser”, por que atravessarei na faixa e somente após o semáforo de pedestres ficar verde para mim? Por que evitar comer açúcar? Se nossa hora está destinada, não há o que fazer para alterá-la. Piquemos essa abobrinha e façamos um refogado com ela. 

“Foi Deus que me salvou.” [Dito por Alice, em entrevista a um repórter do jornal local, após ser a única sobrevivente num acidente de ônibus que matou 38 pessoas.] 

Falta amor, altruísmo, compaixão, bom senso nessa fala. Imaginem que sou a mãe de um rapaz que morreu no acidente. Vejo a entrevista com a única moça sobrevivente e ela diz que Deus a escolheu para permanecer viva. Não é preciso estudo de nenhum tratado de lógica da Grécia Antiga para entender que meu filho, segundo essa moça, foi morto por causa de Deus, porque Deus quis. Mesmo que seja verdade – por que essa moça está se gabando disso num momento que é tão triste para mim e mais 37 famílias? Estou passando por algo tão deprimente e ainda tenho que ouvir isso

“Estou gorda como um barril, preciso emagrecer.” [Dito por alguém ao lado de uma pessoa gorda que não começou o assunto.] 

Digamos que somente metade de quem usa essa fala nessa circunstância – estar ao lado de outra pessoa de fato gorda que não começou o assunto – seja por provocação (e há quem diga que não coloco um pouco de otimismo nas ações humanas, que só uso meu parco conhecimento psicanalítico para compreender o mal). Se você for a pessoa atingida pela provocação, tenha pena, franca pena de quem faz isso. É complexo de inferioridade tentando se mascarar com arrogância. Alguém que precise disso para se sentir bem é digno de dó e deve levar uma vidinha interna muito triste. Se você é a pessoa que faz a provocação, bem, já explanei como é a sua vida. Falemos da outra metade, dos que dizem isso sem ser uma provocação ou indireta a quem esteja em volta. Há coisas, principalmente aquelas que concernem à imagem, que não devem ser ditas em qualquer momento ou devem ser ditas de maneira educada. Ninguém é obrigado a querer estar gordo – ou com outras características que se considerem socialmente desvantajosas –, mas é uma absurda falta de educação chegar ao lado de alguém de um jeito xis e dizer, com a boca cheia, que odeia estar com características daquele jeito xis. Uma vez uma mulher de cabelo cacheado disse horrores sobre o próprio cabelo, e disse que ia morrer se não conseguisse alisá-lo “para ficar decente para sair na rua”, ao lado de um homem negro com o cabelo pixaim. Isso não é “estar só falando sobre si” ou “estar apenas expondo as próprias preocupações”, isso é falta de respeito. É como dizer: “meu cabelo é uma droga, imagine o que eu penso do seu”. Não. Se você não diz ao lado de alguém sem pernas “ah, como é bom ter pernas!”, não sugira ao lado de uma pessoa gorda – ou orelhuda, nariguda, alta demais, baixa demais, magra demais, com olheiras, com manchas no rosto, dentes feios, corcunda, idosa, voz nasalada, língua presa – que você considera horrível estar parecido com ela. E lembre-se: reclamar com visível aborrecimento “ai, como estou velho!” ao lado de alguém mais velho que você também é falta de educação, principalmente se você for jovem. Friso isso porque ocorre com uma frequência assustadora. 

“Aquilo que odiamos nos outros é aquilo que odiamos em nós mesmos.”

Qual é o cabimento dessa autoajuda de quem se formou pelo correio? Tudo bem, eu de certa forma me formei pelo correio, mas gosto de ter pensado que criei essa expressão. Primeiro, gostaria de declarar que acho bom que se ataque o ódio, em especial quando ele é contínuo. Não gostar das pessoas é uma coisa – meu livro com os nomes está no terceiro volume e segue –, odiá-las já tem a ver com um tipo de paixão cega e arrebatadora. Quem odeia vai lembrar do objeto de ódio quando acorda, quando lê um livro, quando ouve uma música que o odiado estima, chega a casa à noite e passa tempo demais reclamando para o companheiro sobre o odiado (“porque fez isso, porque é assim, porque planejou assado”), enfim: tem fixação e gasta tempo. O odiado, enquanto isso, está lá sendo feliz ou outra coisa e nem imaginando que ocupa tanto a existência de alguém que só atingirá o clímax quando vê-lo queimando no meio da praça. Discordo da fórmula “o ódio só faz mal a quem o cultiva” porque já vi muitos odiados sofrendo nas mãos daqueles que os odeiam, atuantes como se estivessem numa batalha, mas acho que o pior dano ainda fica na carga de quem sente o ódio. Assim, combater o sentimento de ódio contínuo – o abrupto nós sempre temos e pode até ser salutar para estimular a ação – é bom. Mas afirmar que aquilo que odiamos nos outros é algo que odiamos em nós… A frase não é apenas cafona. É mentirosa. Eu odeio nos outros a inação a respeito do sofrimento animal que todos conhecem (podem desconhecer a dimensão, mas sabem que o sofrimento existe). O que isso tem a ver comigo? Exatamente: nada. Não como animais, evito usar coisas que agridam animais – como se pode considerar que odeio algo em mim quando odeio a esquizofrenia moral nos outros? Odeio nos outros a incapacidade de pensar “e eu na situação dessa pessoa não faria o mesmo?” antes de começar a tecer críticas. Estou odiando algo em mim? Não, porque me pergunto se não faria o mesmo na situação da pessoa que intento criticar. Se eu faria o mesmo, paro. Se eu não faria, critico. Jesus, que está muito participante nesta página hoje, criticava características que ele “não gostava” nos outros. Estaria a atacar o que havia dentro dele? Peguem todos os grandes nomes de homens que revolucionaram o mundo de maneira virtuosa e percebam que eles “não gostavam” ou “odiavam” vários pontos naqueles que combatiam. Alguém ousará dizer que Martin Luther King criticava nos outros aquilo que ele precisava trabalhar nele mesmo? 

“Se o garoto não tivesse tentado furtar a bicicleta, não teriam tatuado uma sentença em sua testa. Se o Charlie Hebdo não tivesse provocado, os muçulmanos radicais não teriam exterminado os jornalistas.” 

Considero muito grave quando converso com alguém que demonstra não saber aplicar o princípio da proporcionalidade – que deveria reger não só o direito penal, mas nossos julgamentos – a casos que ocorrem por aí. Uma esquerda tonta e injusta disse que se justifica o atentado ao Charlie Hebdo porque “os chargistas provocaram os muçulmanos ao desenhar Maomé em posições humilhantes”. Uma direita tonta e injusta – que se aproxima daquela esquerda pela teoria da ferradura – disse que se justifica a tatuagem na testa do garoto ladrão “porque ele não deveria ter tentado furtar uma bicicleta”. Agora imaginem um mundo dominado por juízes doentes que consideram que fazer uma charge deve ter como vingança o assassinato de dez pessoas e tentar furtar uma bicicleta deve remeter ao castigo que Deus aplicou a Caim. Criticou-se tanto o olho por olho e agora temos uma versão para o século XXI que é o “olho por todos os olhos da vila onde mora o autor do primeiro delito”. O mundo não acabará cego, mas exterminado. Quem pensa “bem-feito” em ocasiões como essa nunca se coloca no lugar de quem sofre a retaliação desproporcional. Mas deveria. E se já vai se defendendo com um “eu jamais faria coisas como essas”, talvez deva abrir o leque e imaginar alguém que ame – um dos pais, um dos filhos, um amigo querido – fazendo algo errado e recebendo de “troco” uma consequência excessiva. 

“Eu apanhei na infância e estou aqui, vivo, firme e forte.” [Dito por alguém que apanhou na infância e quer justificar por que hoje acha correto que se possa “dar uns tapinhas de vez em quando” nos filhos.]

É de muito mau gosto – e uma amostra de ignorância – querer transformar casos isolados em teoria. Conheci uma mulher que não amamentou o próprio filho porque ela, quando bebê, não tinha sido amamentada e mesmo assim “tinha se desenvolvido muito bem” (na época vivia doente, não sei em que parte estava o “bom desenvolvimento”; talvez considere bom o fato de não ter ficado uma anã pela falta de aleitamento). Conheci outra mulher (para uma antissocial, conheci bastante gente, não acham?) que permanecia fumando porque sabia de senhoras na família que fumaram até a longa velhice e tinham ficado bem. Poderia elencar muitas outras histórias de conhecidos, mas acredito que já foi possível entender o ponto: sua ilha não é parâmetro para explicar os continentes. E não faz sentido que você queira que os continentes se adaptem à realidade da sua ilha. Sou contrária à palmada e otras cositas aplicadas contra crianças porque o nome claro disso é violência. Se o esposo não pode bater na esposa, que direito ele tem de bater em quem é menos capaz que a esposa – as crianças? Além disso, a palmada é uma demonstração da falta de controle. Você não consegue se impor como autoridade perante tocos de gente e recorre à agressão. O fracasso é seu. Eu por muitos dias precisei ter domínio de quinze crianças, sozinha. Na maior parte do tempo, estava acompanhada por uma colega, mas ainda assim eram seis, sete, oito crianças para cada uma. E tínhamos domínio sem poder recorrer a qualquer palmada que fosse. A situação é idêntica em milhares de outras creches espalhadas pelo país. Hoje os pais têm um ou dois filhos, perdem o controle e já querem recorrer à violência para consertar sua incompetência. De que serve a pedagogia enquanto ainda estiver valendo a surra? O mais importante aqui é que a sua história de vida, ou a história de um bocadinho de fulanos que você conheceu, não serve para explicar o globo. 

“É fácil que ativistas favoráveis ao aborto falem sobre isso quando puderam nascer. Elas não estariam aqui se a mãe delas tivesse abortado.”

Essa fala dá continuidade à anterior. Minha história pessoal não deve ser parâmetro para a história de outras pessoas. É verdade, nasci porque minha mãe não abortou. Mas se eu tiver que ser contra o aborto por ter nascido porque minha mãe não abortou, pessoas que nasceram de mulheres estupradas devem ser favoráveis à continuidade da gestação de outras mulheres que foram estupradas? Se não fosse o estupro que a mãe delas sofreu, elas não estariam aqui hoje para opinar. É a história de cada um que deve basear o ativismo por uma lei? Já dei esse exemplo anteriormente, mas repito: por parte de mãe tenho antepassados escravos, ou seja, pessoas que foram arrancadas da África para trabalhar no Brasil. É fato que minha mãe só pôde conhecer meu pai nos anos 80 porque no passado seus trisavós foram escravizados. Devo, por isso, ser a favor da escravidão vivida no Brasil porque foi por meio dela que meus pais puderam se encontrar e me dar a vida? Como é fácil para tanta gente transformar questões valiosas e grandes em discussões mesquinhas. 

Obviamente não estou imune a criar fórmulas problemáticas e proferir abobrinhas. Mas eu gosto tanto da minha companhia que todos os dias converso comigo mesma sobre diversas coisas, e esses meus erros de percurso estão entre elas. Vocês deveriam conversar consigo mesmos também. Às vezes poderão se assombrar ao ver que estão conhecendo alguém a quem nunca foram apresentados.

***

NOTAS

1. Dissimulação defensiva é aquilo que você precisa fingir ser para viver em sociedade sem ficar muito prejudicado. Ela é aceitável porque parte do pressuposto de que você não é obrigado a morrer por uma causa. É preciso observar o limite, todavia, porque em poucos passos podemos adentrar o perfil da dissimulação pura, que é nojenta, rançosa e vergonhosa. Dissimulados puros dão por aí como chuchu e muito gente não vê – ou não quer ver.

2. Coitadistas cheios de não-me-toques são os mesmos que apoiam ideias como o leitor sensível, cargo criado por algumas editoras para que personagens polêmicos sejam censurados ao ofender os valores e as frescuras de alguém prepotente que esteja do lado de cá do livro. Há um esquerdismo que ousa falar de Orwell e citar 1984 sem perceber que ele próprio, esse esquerdismo ruinoso, quer com todas as forças criar uma situação semelhante ao Grande Irmão.

3. É possível que alguém não goste de animais e seja vegano, assim como é possível que alguém não goste de crianças e mesmo assim seja a favor dos direitos da criança (ou vocês acham que os autoproclamados “não gostadores de crianças” são capazes de ver um miúdo sendo decepado e depois ir ao cinema apreciar um filme de comédia?). Apesar de ser vegana, em nada me agradam as fórmulas sobre “pessoas ruins não gostam de cachorros” ou “gente que não presta não gosta de gatos”. Pessoas ruins e que não prestam maltratam cães e gatos ou permitem que maltratem esses animais. Gostar deles é uma opção, tratá-los bem é uma obrigação. Muitos de vocês, dog lovers, permitem e pagam para que atrocidades sejam feitas com outros animais – inclusive animais mais inteligentes que os cachorros, como os porcos – e vêm posar de bonitos só porque gostam de ver um animal abanando o rabo para vocês? Patéticos.

4. Desconfiei dos elogios que o livro Fim, da Fernanda Torres, estava recebendo, e por isso fiz o download do livro digital. Li na minha primeira semana de férias, em Lisboa, quando descansava no quarto da pensão e minhas roupas secavam no varal, na janela. (Algumas cidades na Itália e em Portugal podem proporcionar essa experiência tão popular). E o livro é ótimo. Estupendo. Dá vontade de reler logo que acaba. Livros bons merecem ser comprados. Comprei o livro.

4.1. Não é que eu não acreditasse no talento da Fernanda Torres. Como atriz, é ótima. Como colunista da Folha, é impressionante. Mas ler que ela tinha escrito “sobre velhos que vivem situações tristes e cômicas no Rio de Janeiro” e ver que o livro tinha na capa uma praia cheia de guarda-sóis… Venho da literatura em que a praia serve como pano de fundo – um pano de fundo vazio – para matar um árabe, não para ambientar a vida de idosos cariocas. Li resumos e pensei “deve ser um livro que ela está escrevendo para a mãe dela”. Pensei que os tais velhos iam aparecer como caducos, jogadores de dominó e falantes compulsivos – características que muitos velhos têm em contos, crônicas e prosas brasileiras. Preconceito meu. Recomendo a leitura com louvor.